Moda e COVID-19: onde estamos e o que vem por aí?

por Beta Weber

2020 está sendo surreal e assustador. Não era novidade que as coisas precisavam mudar, mas ninguém imaginou que seria preciso um vírus, ainda sem vacina e de proporções trágicas, para sacudir de vez a apatia vigente e o modo automático com o qual estávamos acostumados: apressados e sem tempo, permanentemente distraídos. Pois essa nova realidade e o isolamento por ela acarretado, proporcionou espaço para reflexão e acendeu no coletivo a vontade de fazer diferente.

Apesar de sua natureza efêmera e de se basear em uma teórica capacidade de renovação, a indústria da moda demonstra uma dificuldade imensa de acompanhar o Zeitgeist e se alinhar aos novos tempos. Logo ela, que clama estar à frente, é dos setores que mais apresenta resistência à mudanças tão urgentes. Porém, dessa vez, ninguém saiu ileso e o caos instaurado já vem gerando novos caminhos e tendo resultados concretos. Quais são eles? A seguir vamos discutir alguns e fazer uma reflexão sobre moda e COVID-19.  

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Moda além da superfície:

Elimina-se o tom ditatorial e comprova-se a necessidade de diálogo e troca. O senso de coletividade nunca esteve tão forte. Confiança e transparência ganham lugares centrais, o novo comportamento do consumidor é exigente. Ninguém mais quer comprar apenas um produto, a decisão passa a trazer preocupações éticas: Essa marca se alinha com meus valores? Ela representa minha forma de pensar? Eu tenho orgulho de apoiar essa empresa? Eu me identifico com a mensagem que ela prega?

As pessoas se dão conta que consumo funciona como um voto: onde colocamos nosso dinheiro, como, quando e o que compramos é uma decisão política e fundamental na busca por uma vida mais consciente e verdadeira.

Daí a importância de um approach holístico que vá muito além do efeito ótico: onde e por quem as peças são fabricadas? Como a marca trata seus funcionários, dos prestadores de serviço ao time criativo? Quais as preocupações com meio ambiente? A equipe é diversa? Pessoas de raças e culturas variadas tem poder de decisão ou estão apenas presentes como tokens para momentos virais? 

Pluralidade para enriquecer o diálogo e uma celebração da diversidade de raças, tamanhos, culturas, crenças religiosas, identidade de gênero, orientação sexual e habilidades físicas e cognitivas passa a ser fundamental, não de forma trendy e forçada, mas sim como reflexo natural da realidade. 

Nesse cenário, as marcas que pretendem ter êxito, precisam de propósitos e valores bem definidos, traduzidos em produtos criativos, além de oferecer experiências inspiradoras e consistentes, garantindo que sua mensagem esteja clara e presente em todos seus canais. Elas se tornam universais e precisam gerar emoções: Invocar sentimentos, empolgar, inspirar ou entreter.

Quem ganha os holofotes são marcas e lojas mais autorais, que possuam um ponto de vista não baseado apenas em algoritmos, mas sim em uma compreensão profunda de sua comunidade, tornando sua fórmula única e impossível de ser reproduzida e assim, justificando sua existência.

Repensando o branding: para obter uma performance comercial bem sucedida, não é mais possível ignorar as questões relevantes e nem buscar ferramentas de marketing utilizando um storytelling criado para uma campanha pontual, ou se baseando em discursos prontos, é preciso ir além das aparências confirmando através de atitudes diárias, concretas e coerentes qual a sua mensagem e então considerar como compartilhá-la de forma efetiva com o mundo em tempos de moda e COVID-19.

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Sustentabilidade: 

Como já estabelecemos, o consumo não deixará de existir, mas a decisão da compra levará em conta diversos aspectos. Um dos principais fatores a influenciar esse comportamento da moda e COVID-19 é o impacto causado ao meio ambiente. Quais são alguns dos efeitos impulsionados por essa nova consciência?

Venda sob encomenda/demanda: na prática, veremos aumento considerável de peças feitas sob medida, ajudando a diminuir um dos principais problemas da indústria, a quantidade de estoque que sobra e o volume absurdo de roupas sendo fabricadas e descartadas. 

O calendário da moda aponta para coleções menores e menos frequentes, o que já vem ocorrendo no anúncio de diversas marcas alterando seu cronograma de lançamentos para o sistema de duas vezes por ano.

Economia circular: brechós, revendas, aluguel de roupas e peças renovadas através de customização crescerão com mais rapidez.

Além dos impactos ambientais causados por vôos, a pandemia fechou fronteiras, e diminuiu viagens, voltando às atenções para nossas próprias comunidades, fomentando o consumo local e a valorização de marcas e produtores pequenos.

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Os looks:

O distanciamento social aumentou a necessidade de conexão: a busca por conforto, intimidade, serenidade e tudo que sentimos que nos foi roubado perante à crise global. Nessa temporada da vida atual, as roupas exigem praticidade, fogem da ostentação e servem um propósito, nossas expectativas quanto ao que usamos ultrapassa o estético e esperamos que a entrega vá além, não compramos mais meramente uma peça de roupa e sim uma ideia. 

O feito à mão e artesanal ganha novo status impulsionado pela necessidade de explorar sensações e celebrar o que é feito com cuidado e esmero, valorizando cada vez mais o toque humano. 

Mesmo que existam comprovações psicológicas dos benefícios de se vestir para trabalhar de casa (também conhecido como tirar o pijama), soa igualmente absurda a ideia de usar um terninho ou calça muito ajustada para encarar a jornada de trabalho do alto da sua mesa de jantar, é desse dilema que dois dos principais booms de consumo da quarentena ganharam seu lugar ao sol.

Loungewear ou roupas para ficar confortável em tradução livre, são as responsáveis pelas maiores vendas no momento. Para enfrentar o home office, uma variedade de conjuntinhos de malha ou moletom, materiais flexíveis, roupas que não restrinjam movimento, peças com elástico, formas amplas, vestidos leves e materiais que não amassam se tornaram os prediletos. 

Athleisure, que une esportes + lazer, reflete a vida dinâmica e a necessidade de um look que possa ser usado durante o dia todo, mudanças práticas na rotina como tentar fazer mais atividades a pé ou de bicicleta, a popularidade cada vez maior da cultura do yoga, exigem um armário que combine performance e forma e preencha requisitos variados. 

As reuniões remotas, que se tornaram norma, trouxeram destaque para acessórios e roupas com foco na metade de cima do corpo. Como mangas volumosas, golas elaboradas, cores, estampas, texturas concentrados da cintura para cima. 

Por fim, a cartela de cores mais popular tem a ver com restauração e reconexão, tons neutros puxando para os terrosos que remetem à natureza como verdes, amarelos e laranjas ganham destaque especial e apontam para a vontade de estarmos mais próximos do ar livre e conectados com a terra, mesmo que apenas mentalmente.

O mercado de luxo:

O exclusivo fica mais exclusivo: preocupados com a manutenção de status e lucro e utilizando da ideia de que quanto mais raro e difícil de encontrar, mais valor tem, marcas lançam mão do princípio da escassez, com estratégias que visam limitar o acesso aos seus produtos, sendo pelo aumento de preço (Chanel, Louis Vuitton e Bottega Veneta são algumas das que alteraram suas tabelas em 2020), ou restringindo suas coleções através de edições limitadas, drops surpresa e produtos só disponíveis em lojas próprias, todos métodos velhos conhecidos do mercado de streetwear. 

Com a interrupção das viagens e a necessidade de distanciamento social, as fashion Weeks migraram para o digital: nas últimas semanas, no hemisfério norte, rolaram apresentações das semanas de temporada masculina, alta costura, Resort, primavera/Verão 2021 e até flash (coleções que não seguem um calendário e são criadas para gerar atenção). Apesar de duas ou três marcas terem feito desfiles semi tradicionais, a maioria teve o bom senso de usar a criatividade e encontrar formas renovadas de mostrar suas propostas: Através de vídeos, instalações, repensando casting e até alterando definitivamente seu calendário. 

Foram 12 horas de live streaming da Gucci e os lançamentos modelados por membros do time com idades, culturas, raças e biotipos distintos, 5 artistas audiovisuais mostrando sua interpretação da Prada, vídeo instalação da Valentino com participação da cantora FKA twigs produzido nos icônicos estúdios Cinecittà, o desfile físico com distanciamento em meio uma lavoura de trigo da Jacquemus, “Show-in-a-box”ou “desfile na caixa” com Jonathan Anderson na Loewe e o deslumbrante docu-filme com duração de 50 minutos compartilhando o processo criativo de John Galliano e do ateliê de couture da Maison Margiela.

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Diversificando a oferta: 

Máscaras tinham aparecido em algumas coleções, como da Balenciaga na temporada Outono/Inverno 2020, e agora viram protagonistas já que se tornam, por tempo indeterminado, item indispensável e parte integral do nosso dia a dia. A demanda cria a oferta e a sua onipresença vai gerar a vontade de modelos customizados e que façam parte do look, se adequando ao estilo de quem a está usando. Resultando em cada vez mais marcas fabricando suas próprias e contribuindo para torná-las objeto de desejo. Em escala menor, outros complementos que ajudam na proteção viral como luvas e lenços também ganharam destaque.

O aumento do tempo em casa gerou a necessidade de repensarmos os ambientes que vivemos e marcas devem explorar ainda mais o segmento de interiores, oferecendo mais objetos de casa e decoração e expandindo também para o sempre lucrativo universo da beleza e produtos que tragam bem-estar e estimulem o autocuidado. 

Peças antivirais: Uma fornecedora de tecidos suíça anunciou recentemente a criação de um material chamado Viroblock que adiciona uma camada invisível que promete eliminar 99,9 % do SARS-CoV-2, o vírus que causa o COVID-19, o efeito se mantém intacto por até 30 lavagens. Apesar de inicialmente criado visando uniformes para profissionais de saúde, uma marca de jeans deve lançar os primeiros produtos com essa tecnologia já em Outubro e essa integração só tende a aumentar.

O pós: 

Depois da tempestade vem a bonança e após meses de lockdown, quando finalmente o vírus estiver controlado, podemos prever um período de euforia e liberdade. Essa suposição é baseada na moda pós-guerra, onde um dos fenômenos observados para lidar com os resquícios psicológicos da experiência traumática, foi a de uma necessidade de ir radicalmente ao oposto de itens e estilos muito usados durante a crise, que acabaram transformados em gatilhos e símbolos de um período que a maioria queria esquecer.

Traçando um paralelo com o momento presente, dá para imaginar que depois de um longo tempo sem interação social e convívio em ambientes públicos, sejamos acometidos por um desejo renovado de coisas belas e espírito celebrativo, emprestando um senso de ocasião e acontecimento à qualquer saída. Pense em uma ode ao glamour com brilhos, plumas e paetês e uma adaptação do método Marie Kondo edição estilo com peças que tragam alegria, tenham valor sentimental e que mesmo não objetivamente úteis ou práticas, transmitam uma sensação especial.

A mensagem final é de esperança, a moda por definição precisa do futuro para existir, apesar de muitos dos hábitos da indústria ainda se basearem em métodos ultrapassados e nada condizentes com a promessa que ela carrega em sua essência. Porém, após pandemia global, teremos a chance de revolucionar e elevar a moda ao seu potencial máximo: em sua melhor versão, ela tem a capacidade de romper padrões, desafiar conceitos, propor olhares frescos, ampliar novas vozes, transformar perspectivas e ajudar a moldar os próximos tempos. Que assim seja. 

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