A sombra azul vai muito além de uma mera tendência e nós explicamos porque

por Izabela Suzuki

Nos dê licença, clean girl beauty, porque hoje os holofotes estão todos voltados para uma das maiores estrelas da história da maquiagem: a sombra azul. Sempre na linha tênue entre o icônico e o cafona, essa cor carrega uma bagagem que vai muito além de um simples item de nécessaire. Fortemente entrelaçada com momentos de resistência, a sombra azul marcou gerações — de Elizabeth Taylor a Divine e sua participação polêmica (porém inesquecível) em Pink Flamingos, lá em 1972. Passando por Naomi Campbell e chegando até Chappell Roan, é impossível negar: o azul deixou — e continua deixando — um impacto cultural gigantesco.

Mulher com maquiagem de sombra azul, cabelo trançado com detalhes dourados e vestido preto, em fundo azul.
Foto: Elizabeth Taylor em 'Cleópatra' (Reprodução/Internet)


um breve recap da história da sombra azul na beleza

E essa relação entre transgressão e autoafirmação vem de longe. Nos anos 60, enquanto o mundo ainda respirava os resquícios de uma beleza mais contida, a sombra azul começou a ganhar força como um verdadeiro grito de juventude e ousadia. Ela apareceu nas pálpebras de modelos como Twiggy, ícone do movimento mod londrino, e também nas de Elizabeth Taylor, que, em 1963, eternizou uma das imagens mais icônicas da cultura pop ao interpretar Cleópatra no cinema — com direito, claro, a uma sombra azul impactante, que virou referência imediata. Pouco depois, o tom também ganharia ainda mais espaço, aparecendo nos olhos de Jane Fonda em Barbarella (1968), nas makes experimentais de David Bowie nos anos 70 e até nas produções glam de Debbie Harry, do Blondie, já no final daquela década. 

Quem ousava era taxada de dramática? Com certeza. Mas isso nunca foi um problema para nomes como Cher, Diana Ross ou Priscilla Presley, que transformaram o azul em sinônimo de poder e presença. A própria Princesa Diana eternizou um traço azul nos olhos

Já nos anos 90 e 2000, a sombra azul viveu um dos seus momentos mais controversos: foi da estética dos bailes de formatura ao Y2K “frosted eyeshadow”, virando rapidamente sinônimo de cafonice. 

de icônica a cafona

Mas por que, afinal, o azul nas pálpebras acabou virando sinônimo de exagero, breguice ou até de uma certa caricatura feminina? A resposta vai além da estética e mergulha em questões de classe social e controle do imaginário feminino.

O site Autostraddle, especializado em cultura pop sob uma lente crítica e feminista, aborda justamente esse tema: o quanto a sombra azul foi, durante décadas, associada à mulher da classe trabalhadora — e como essas representações foram, muitas vezes, carregadas de julgamento e deboche.

Segundo o texto, personagens como Mimi, da série The Drew Carey Show, ou Zinnia, a mãe de Matilda no clássico infantil, são exemplos claros dessa construção: mulheres que ousavam exibir uma estética chamativa, com sombra azul, batom forte, animal print e muita atitude — e que, justamente por isso, acabaram sendo retratadas como cômicas, grosseiras ou "inadequadas". Como descreve o Autostraddle:

Elas parecem exalar um tipo de autoconfiança que é uma piada. Afinal, como uma mulher pobre ousa se orgulhar de sua aparência?”

Mas a história da sombra azul não se limita apenas às representações da classe trabalhadora. Existe também um recorte muito presente e pouco discutido: a relação da cor com a vida noturna, a estética das profissionais do sexo.

Uma das primeiras aparições cinematográficas da sombra azul foi em Une Femme Est Une Femme (Uma Mulher É Uma Mulher), filme francês de 1961. Nele, a personagem Angéla — uma stripper que sonha em ser mãe — surge com um azul claro nas pálpebras, semelhante ao tom que depois seria eternizado por Twiggy. Mais do que uma escolha de maquiagem, o azul ali carrega um significado: marca uma mulher que transita entre o glamour da noite e uma certa melancolia diurna, sempre com uma camada de sonho e tragédia por trás dos olhos.

A partir daí, a sombra azul foi ganhando um novo tipo de narrativa: virou símbolo das artistas da noite, das figuras "demais" para os padrões diurnos — e, inevitavelmente, também acabou sendo absorvida pela cultura queer, onde expressão, excesso e performance sempre foram formas legítimas de resistência.

Jovem com sombra azul nos olhos e cabelo castanho preso, veste suéter vermelho. Ela olha para o lado.
Foto: Anna Karina como Angela em 'Une Femme est une Femme' (1961) (Reprodução/Internet)

Esse estigma da mulher "over", "cafona", "demais", carregando azul nos olhos, dialoga com um preconceito mais profundo sobre quem tem ou não o direito de ser vaidosa, ousada e visível. E reforça ainda mais o papel da sombra azul como um símbolo de resistência, expressão e até de subversão, seja nos anos 70, nas pálpebras de Divine, ou hoje, na estética maximalista de nomes como Chappell Roan, que devolvem ao azul o lugar de destaque que ele sempre mereceu: um ato de afirmação, poder e espetáculo.

Afinal, se tem um universo onde o azul nunca deixou de ser um símbolo de força, presença cênica e liberdade, é o da cultura drag. O artista, maquiador e performer Raphael Jacques (Alma Negrot), que mistura arte, beleza e espiritualidade em suas criações, trouxe uma leitura ainda mais profunda sobre o significado da cor. “Azul é uma cor que me conecta com o divino. Quando eu apareço em azul, minha figura toma um ar que o público traduz como uma entidade. O azul me faz lembrar que cada um de nós carrega em si essa realeza e esse mistério. Só é preciso saber acessar esse devir.”

Na visão de Raphael, a sombra azul também é sobre provocar o olhar alheio, ser visto e, acima de tudo, ser lembrado. “Ela é menos explorada em maquiagens convencionais do dia a dia porque entra numa gama de cores 'ousadas demais’. Chama bastante atenção quando alguém usa. Pra mim, o fato de usar uma sombra assim remete à criatividade, ousadia e, claro, à realeza e ao etéreo.”

Pra mim, o fato de usar uma sombra assim remete à criatividade, ousadia e, claro, à realeza e ao etéreo.”

o seu comeback triunfal

Essa energia de ousadia, espiritualidade e provocação ecoa nas gerações atuais, que não só perderam o medo de usar a sombra azul, como estão ressignificando a cor com novas técnicas e propostas de beleza. Quem confirma essa transformação é a maquiadora Mari Devito, que acompanha de perto o movimento nas redes sociais e nas produções de beleza mais recentes. “Acredito que seja muito pela influência da moda dos anos 2000, da geração TikTok, que tem repaginado muitas coisas que usávamos antigamente. Eles têm trazido de uma maneira mais atual, e completamente diferente.”

Seja em traços discretos, seja em esfumados vibrantes ou delineados gráficos, a sombra azul volta agora com um novo status: o de uma beleza sem culpa, sem regras e com espaço garantido para a autoexpressão. Entre a nostalgia dos anos 2000, o impacto da cultura drag e o desejo coletivo de devolver cor e ousadia à maquiagem, o azul nas pálpebras deixa claro que tendência nenhuma morre de verdade. Ela só espera o momento certo para renascer ainda mais forte e glam.