Para analisar o presente e imaginar o futuro, é necessário revisitar o passado. A natureza cíclica da moda proporciona vários aprendizados e a possibilidade de identificar padrões, que nos ajudam a prever e contextualizar tendências. Entender a origem e desmistificar termos abre um mundo de possibilidade e reflexões, gerando novas perspectivas, estimulando a curiosidade e despertando uma apreciação ainda maior pelo assunto. Dessa ideia, nasce a nossa nova coluna mensal, História da Moda, com a promessa de compartilhar a história de períodos, personagens importantes, peças icônicas e criações inesquecíveis do universo da moda. Para dar o start nessa #stealtheclass, o tema é a trajetória da marca Bottega Veneta.
Das grandes maisons centenárias às marcas de nicho que ainda nem saíram da adolescência, a quantidade de nomes relevantes na moda é gigantesca, porém, nenhum causou mais alvoroço - e desejo - nos últimos anos do que a italiana Bottega Veneta.
_ o início
A Bottega Veneta foi fundada no ano de 1966, em Vicenza, no Norte da Itália, por Michele Taddei e Renzo Zengiaro. A marca, cujo nome significa “Loja Veneziana”, começou e continua até hoje como especialista em artigos de couro de alto luxo.
_ intrecciato
Apesar da Bottega não ter um logo famoso, ela tem uma marca registrada ainda mais valiosa, o método intrecciato, tão reconhecível quanto o matelassê da Chanel. O mais interessante é que seu carro-chefe surgiu de uma adversidade. No início dos anos 70, a jovem marca sentia dificuldade em competir com a produção mega tradicional e mundialmente respeitada de grandes fábricas italianas do segmento, e as máquinas disponíveis na região de Veneto, onde ficava o ateliê, eram apropriadas para confecção de roupas e não para a delicadeza do couro que eles utilizavam. Então, o jeito foi desenvolver o método de couro trançado, batizado de intrecciato, que garantia mais firmeza ao material, além de aumentar sua durabilidade, permitindo que o mesmo fosse processado nas máquinas à disposição.
Além de solucionar a questão, a técnica feita à mão, super artesanal e meticulosa, elevou ainda mais os produtos desenvolvidos por eles, agregando valor e renovando o conceito de luxo. Desde 2006, a companhia abriu a "La Scuola dei Maestri Pellettieri di Bottega Veneta”, criada especialmente para treinar profissionais nessa arte indissociável ao sucesso da Bottega.
Nesse vídeo de 2013 é possível conferir e se encantar com o método Intrecciato:
_ os códigos atemporais
Discrição, qualidade, requinte e excelência são pilares que podem ser observados em tudo que se relaciona à Bottega. No início dos anos 80, criaram o slogan "When your initials are enough" ou "Quando suas iniciais são suficientes”, que traduz muito bem a essência.
Sem logos aparentes, o nome aparece sempre na parte interna no produto. A ideia de luxo é totalmente baseada na matéria-prima impecável, no processo cuidadoso e artesanal, no acabamento e técnicas utilizadas, na longevidade e na tradição e herança da marca. Indo completamente contra ao conceito do luxo, como ostentação e a logomania. A Vogue norte-americana batizou o estilo da Bottega como "Stealth Wealth", que significa riqueza furtiva ou discreta. Ótima definição dos valores cultivados pela companhia até hoje.
A campanha com o slogan:
_ anos 80 e anos 90
Com a saída de Renzo no fim dos anos 70, Michele passou a direção criativa para a ex-esposa do sócio, a estilista Laura Moltedo. Laura era uma jetsetter que passava grande parte do seu tempo em Nova Iorque, seu lifestyle ajudou a popularizar o nome da marca na alta sociedade internacional, criando relações com nomes como Andy Warhol, que dirigiu um curta sobre a Bottega.
Além disso, suas boas conexões permitiram a proeza de incluir uma clutch Bottega Veneta no figurino celebradíssimo de Lauren Hutton no filme “Gigolô Americano”(1980), um hit da época que contava também com Richard Gere usando criações do então jovem designer, Giorgio Armani. Na década seguinte, a marca não conseguiu acompanhar os tempos e acabou perdendo espaço chegando à beira da falência.
Andy Warhol com loafer da marca.
Lauren Hutton com clutch Bottega no filme "Gigolô americano".
_ nos anos 2000
Em 2001, Bottega Veneta foi vendida para o então grupo Gucci, hoje incorporado ao conglomerado de luxo Kering, onde divide espaço com outros nomes de peso da moda como Saint Laurent, Alexander McQueen, Balenciaga, além da própria Gucci.
O primeiro passo após aquisição, ainda em 2001, foi contratar um novo diretor criativo. O eleito foi o Alemão Tomas Maier, que veio da Hermès. Ele tinha a expertise necessária e um excelente tino para negócios. No seu debut, concebeu um grande hit, a clutch “Knot”, pequena e estruturada com um fecho em formato de nó - por isso, o nome knot. Ela foi a favorita das celebridades e um sucesso absoluto no boom dos blogs lá no fim da primeira década do milênio. Aliás, é bem possível que você conheça o modelo e até tenha um item inspirado nela.
Celebridades como Kim Kardashian sempre desfilavam com uma The Knot e ajudaram a popularizar o design dessa clutch.
_ a era tomar maier
Depois de reconquistar sucesso no métier de acessórios, Maier sentiu que era hora de se aventurar em outro frontier, o das roupas: 40 anos depois de seu nascimento, em 2005, a primeira coleção prêt-à-porter feminina da Bottega Veneta foi lançada, seguida pela masculina em 2006.
Interessante é que a decisão de iniciar a produção de roupas surgiu de uma necessidade. Tomas contou que eles precisavam vender os cintos que produziam, então a primeira calça foi criada como complemento dos acessórios, pois o look completo ajudava a comunicar à mulher da marca de forma mais eficiente: elegante, discreta, feminina, priorizando uma cartela de neutros e qualidade altíssima. Ao longo de 17 anos no controle da grife, o alemão trouxe um crescimento considerável e colocou o nome da Bottega Veneta de volta no mapa, mas ainda em posição de coadjuvante.
Campanhas da época Tomas Maier:
Respeitada, sim, porém ainda pouco relevante, a marca inspirava admiração pela tradição e qualidade, mas faltava um ingrediente especial e mais ousado para realmente se destacar. A jogada de gênio veio em 2018, quando ocorreu a troca decisiva responsável por catapultar a Bottega do patamar de marca luxo tradicional e levemente antiquada para o posto de mais desejada do mundo. Foi a nomeação de Daniel Lee como diretor criativo.
_ 2018 e a era daniel lee
Apesar de ser um designer até então pouco conhecido, a entrada de Daniel Lee foi vista com bons olhos desde o início graças ao currículo imbatível e timing certeiro. Vindo direto da Celine, onde havia mantido o cargo de diretor de prêt-à-porter durante a época reverenciada de Phoebe Philo, o britânico ainda tinha batido ponto previamente na Margiela e na Balenciaga.
Extremamente preparado, ele chegou cheio de energia e pronto para injetar modernidade à qualidade impecável da Bottega Veneta. Conquistando, logo de cara, uma legião de fãs sedentos por um ponto de vista que dialogasse entre contemporâneo e tradicional com sex appeal e personalidade. Sua versão da marca foi apelidada carinhosamente de “New Bottega”.
Historicamente a marca sempre foi conhecida pelo luxo silencioso, qualidade e durabilidade. E no período Maier, o foco foi em manter um certo distanciamento de tendências, apelando para tradição irrevogável, imagem feminina e elegante, porém com pouca emoção. Já nesse novo momento, Lee veio disposto a quebrar paradigmas, respeitar e celebrar códigos, mas não se apoiar apenas na história. O objetivo não era fazer parte da conversa, mas liderar, criando diálogos completamente novos com muita individualidade, originalidade e uma leitura pouco ortodoxa de produtos de valor atemporal.
A ousadia rendeu frutos rápidos. Logo em seu primeiro ano no posto, ele conquistou um feito inédito, batendo recorde de vitórias no Fashion Awards, vencendo nas quatro categorias que foi indicado: Marca do ano, Designer do ano, Designer feminino do ano e Designer de acessórios do ano.
_ principais pontos da "new bottega"
Couro e o processo artesanal e meticuloso são sinônimos da marca então não é surpresa que Daniel tenha construído sua visão ancorada nesses valores. O couro migrou dos acessórios para invadir também os looks, enquanto a devoção pelo artesanal foi expressada por outros meios, como nos tricôs de acabamento impecáveis. Por fim, o repertório de complementos poderosos foi ampliado através de joias esculturais e ferragens, que passaram a adornar calçados e bolsas, adicionando peso e renovando shapes.
Tricô na campanha mais recente:
Correntes:
A mulher Bottega Veneta na visão de Lee tem discrição eloquente, comunica através de suas roupas uma personalidade sutilmente potente e autoconfiante. Ela é subversiva em sua escolha de cores e silhuetas, e refinadamente moderna com toque de excentricidade, valorizando a estética, mas sem abrir mão da praticidade. Ela preza, acima de tudo, por qualidade e durabilidade.
Outro detalhe que faz parte da "New Bottega", texturas:
Assim como uma cartela de cores inusitadas:
Mestre em reinvenção, Lee revolucionou o método Intrecciato utilizando proporções, texturas e muita criatividade. Nas suas mãos, o trançado característico virou oversized. Foi maximizado, acolchoado, escapou para roupas, virou item de apelo esportivo na versão puffer, enfeitou sapatos e surgiu em diversos materiais diferentes garantindo uma visão contemporânea da técnica icônica da marca.
Porém, nada disso seria suficiente para transformar a Bottega Veneta em fenômeno de crítica e vendas se Daniel não tivesse um talento fundamental, a capacidade de criar acessórios irresistíveis. Afinal, calçados e bolsas representam a maior parte dos lucros das grandes marcas de moda e são o ticket de ouro para garantir relevância.
Muitos dos best-sellers criados por ele acabaram inspirando tendências que impactaram nossos looks. Listamos alguns deles abaixo e queremos saber: por quantos desses itens vocês foram influenciados?
A bolsa pouch, lançada em sua primeira coleção para Bottega, esgotou em tempo recorde.
A cassette bag foi a mais vendida da marca no ano passado:
As combat boots se concretizaram como uma verdadeira febre do Inverno:
E também dividiram espaço com as polêmicas Puddle boots:
Tudo isso sem contar o grande hit do bico quadrado. Muita da volta dessa tendência é culpa da Bottega Veneta.
Vimos esse acabamento geométrico e os entrelaçados até em mules, que viraram febre entre as fashionistas.
Outro grande sucesso foram os sapatos com detalhes de correntes:
_ a saída das redes sociais
Nos primeiros dias de 2021, a marca causou alvoroço mundial ao deletar suas contas no Instagram - com 2,5 milhões de seguidores - e no Twitter, além de apagar todo conteúdo existente no Facebook mantendo apenas a foto de perfil. A atitude realmente surpreendente em um mundo cada vez mais baseado na presença online.
Apesar de ir contra o comportamento da maioria das marcas - e dos conselhos de branding e marketing em geral -, a saída das redes sociais faz sentido para a Bottega Veneta, que carrega em sua essência valores como discrição, exclusividade e a intimidade do processo artesanal. A escolha pode ter a ver com a vontade de recuperar um certo mistério e evitar a superexposição.
Além disso, a saída também combina com a posição pessoal de Lee, que nunca teve um Instagram próprio e optou por um desfile de Verão 2021 presencial, mesmo com as limitações ocasionadas pela pandemia, por não acreditar em apresentações digitais.
Em tempo, até hoje, não houve nenhum pronunciamento oficial sobre o sumiço, porém, François Pinault, CEO da Kering, do qual a Bottega faz parte, deu pistas sobre o assunto em declaração recente à publicação WWD: Ele fez questão de enfatizar que cada marca do grupo tem um approach diferente e coerente com a sua imagem e que o atual status offline da grife Italiana confirma isso. Mencionando também a potência da Bottega que segue em voga nas redes através de conteúdo gerado de maneira espontânea pelos milhares de devotos da estética de Lee e sua #newbottega.
Seria a decisão algo temporário ou aposta visionária? Difícil prever, já que em Janeiro, a marca anunciou a busca por um global social media manager através do site Business of Fashion.
Vamos ficar de olho!
_ quer mais?
Para assistir: "Gigolô Americano” de Paul Schrader (1980)
Para pesquisar: "Bottega Veneta- When your own initials are enough” Tomas Maier
Para seguir: Já que a marca não tem mais conta oficial no instagram, vale dar follow na @newbottega, criada por uma fã e com mais de 400k seguidores, é ótimo lugar para se manter atualizado sobre as úlitmas do universo Bottega.
Abaixo você confere o IGTV onde a stylist e colaboradora Beta Weber conta tudo, vem ver: