Desde o mês passado, demos início a uma nova coluna para compartilhar a história da moda através de décadas, grandes marcas, personagens importantes, peças icônicas e criações inesquecíveis desse universo. Hoje, a marca eleita da vez para ser tema da nossa #STEALTHECLASS é a Gucci, que completa 100 anos de vida em 2021.
Dos consumidores mais conservadores, que não abrem mão das bolsas icônicas, até os fãs da cultura pop ou da vibe street style, a Gucci atende uma parcela enorme da população com uma capacidade ímpar de despertar desejo e se manter relevante em um mundo em constante movimento. É justamente essa combinação de reputação centenária como marca de luxo e o talento para captar o zeitgeist, dialogando diretamente com os jovens, que proporcionam o seu sucesso estrondoso. Mas, o caminho foi longo até aqui e é essa história cheia de glamour, reviravoltas e, lógico, produtos irresistíveis que a gente conta a seguir.
_o início
Italiano de Florença e nascido em 1881, Guccio Gucci fundou a Gucci em 1921, aos 40 anos de idade. Sua história de contornos clássicos tem uma trajetória digna de fábulas: de família humilde, filho de um artesão de couro, venceu as adversidades para dar origem a um império.
O jovem Guccio tinha ambição e curiosidade, porém não sabia bem o que desejava fazer como profissão, optando por passar parte da sua vida viajando pela Europa e trabalhando em empregos variados para se manter. E foi em um desses empregos que sua vida tomaria rumo definitivo. Durante um período em Londres, ele conseguiu uma vaga como ascensorista no Hotel Savoy - um dos mais luxuosos do mundo até hoje. Passando seus dias no espaço restrito do elevador, Gucci se distraía observando as bagagens e detalhes das roupas usadas pelos hóspedes jetsetters, absorvendo a riqueza daquele universo e desenvolvendo ali, um olhar especial que viria a ser parte fundamental das suas criações futuras.
Voltando para Itália em 1902, foi trabalhar na Franzi, uma fabricante de couro da sua região, adquirindo conhecimento técnico e aprimorando seu olhar. Quase duas décadas depois, com anos de experiência acumulados, nasceria a Gucci.
_os códigos atemporais
Inicialmente, a Gucci se especializou em bagagens e acessórios de montaria, e muitas das suas inspirações, que permanecem até hoje, vieram daí. A fascinação pela estética dos cavaleiros é consequência dos anos em Londres, trabalhando no Savoy e tendo contato com a alta-sociedade inglesa, adepta de esportes equestres e equitação.
O encontro da excelência artesanal italiana e a influência do estilo tradicional e levemente excêntrico da aristocracia britânica proporcionaram um resultado singular, e fizeram com que a marca conquistasse uma clientela seleta, formada especialmente por membros da high-society italiana.
_as marcas registradas
Existem alguns elementos visuais que são sinônimo da marca e indissociáveis da sua história de sucesso. Entre eles, as três listras em vermelho e verde ou vermelho e navy, que são inspiradas em desenhos típicos de sela de cavalo e adornam todo tipo de produto da grife.
O Horsebit, com design que lembra freios de cavalo e aparece em bolsas e no tradicionalíssimo mocassim, também é um hit absoluto da Gucci há mais de 50 anos.
O logo de GG entrelaçado foi desenhado nos anos 30 por Aldo Gucci e é uma homenagem ao fundador com suas iniciais eternizadas. Após a morte de Guccio Gucci, na década de 50, o logo virou marca registrada oficial da grife.
Também é preciso lembrar da estampa de diamante ton sur ton. Em 1936, o embargo da Liga das Nações proibiu importações para a Itália, deixando a empresa sem acesso ao seu material principal, o couro. Na busca por substituições, a Gucci desenvolveu um tecido especial super resistente em cânhamo, que era acompanhado da estampa tradicional para elevar e dar um ar mais luxuoso à alternativa.
A bamboo bag, concebida em 1947, foi resultado de outra tacada genial impulsionada por uma limitação: a crise econômica generalizada ocasionada pela Segunda Guerra Mundial. Essa crise gerou escassez de matéria-prima e forçou a marca a experimentar alternativas diferentes para confeccionar seus produtos. Um dos eleitos foi o bambu japonês, que acabou inspirando e dando luz à uma das bolsas mais famosas de todos os tempos.
A bolsa Jackie, criada nos anos 60, é outro clássico da Gucci. Originalmente chamado de hobo, esse modelo teve seu nome alterado para homenagear a sua fã mais célebre, Jackie Kennedy - a bolsa era a favorita da antiga primeira-dama norte-americana e eterna style icon.
Mais uma marca registrada, a estampa Flora, um floral com fundo branco, conta com incríveis 43 tipos de flores, plantas e insetos ilustrados em uma cartela de 37 cores diferentes. A padronagem foi comissionada especialmente para estampar um lenço dado de presente à Grace Kelly, também durante os anos 60.
_o crescimento
No fim da década de 30, os três filhos de Guccio, Aldo, Vasco e Rodolfo, se juntaram ao pai para traçar planos ambiciosos de expansão. O ano de 1953 foi um divisor de águas, já que contou com dois importantes acontecimentos: a estreia em solo norte-americano e também o falecimento do fundador, apenas duas semanas após a abertura da loja.
Apesar da partida do patriarca, a recepção calorosa nos EUA e uma nova clientela, formada por estrelas de Hollywood e membros da realeza, marcou o início de um período de ouro da Gucci que durou décadas e a colocou como líder no mercado de luxo. Em meados dos anos 70, a dominação era mundial: a marca já tinha uma lista de produtos best-sellers, aberto lojas na Ásia e no restante da Europa, e se aventurado no métier de fragrâncias com o lançamento de seu primeiro perfume, diversificando sua oferta e consolidando o império que seguiria em ascensão até a chegada dos anos 80.
_ascensão e declínio da dinastia
Se a origem da Gucci, construída do zero por um Italiano sonhador de família humilde, remete a um conto de fadas, a trajetória dos herdeiros se assemelha mais a uma tragédia grega - daquelas cheias de escândalos, disputas internas, trapaças, intrigas e até assassinato.
O último Gucci a comandar a empresa foi Maurizio, neto do fundador e filho de Rodolfo, que em 1983 tirou Aldo do poder e assumiu seu lugar através de um plano maquiavélico. A jogada deu o start em uma época difícil para a família, que culminaria em um fim trágico. Foi durante essa gestão que a Gucci enfrentou sua pior crise, chegando à beira da falência, até ser vendida em 1993. Porém, a parte mais chocante da saga familiar ainda estava por vir: em 1995, quando Maurizio foi assassinado e sua ex-esposa, Patrizia Reggiani, foi condenada como mandante do crime.
Recentemente, o fato voltou aos holofotes devido ao anúncio bombástico de um longa que contará a história, com roteiro adaptado do livro "Casa Gucci”, de Sara G Forden, e direção de Ridley Scott. No elenco, tem nomes de peso como Lady Gaga, Adam Driver, Al Pacino e Jared Leto nos papeis principais.
As filmagens já estão rolando, mas a data de estreia ainda não foi divulgada.
Por fim, a venda da Gucci para um grupo de investimentos marcou o final oficial do envolvimento da família fundadora no negócio. Mas, por outro lado, sinalizou o renascimento da marca com o apontamento de Tom Ford como diretor criativo.
_a era tom ford
O texano já atuava como designer feminino da marca desde 1990, mas só ao assumir o controle criativo, em 1994, que conseguiu colocar em prática suas ideias para renovar a casa. Subversiva e transbordando sensualidade, a Gucci de Tom Ford não era para tímidos.
Sua estratégia vencedora consistiu em trazer uma dose intensa de sex appeal ao minimalismo vigente da época: shapes simples e alfaiataria foram elevados através de materiais luxuosos, silhuetas ajustadas, decotes e recortes vertiginosos, injetando glamour e atitude aos designs nada modestos.
Essa sofisticação para maiores de 18 anos era perfeitamente representada em suas campanhas para Gucci, feitas em colaboração com o fotógrafo Mario Testino e a stylist Carine Roitfeld. O resultado eram sempre imagens de moda inesquecíveis, que fizeram história e causaram muita polêmica.
Tom Ford não brincava em serviço e sabia como causar alvoroço. Sua propaganda mais controversa mostrava uma modelo com o G da Gucci depilado em suas partes íntimas, uma alusão à logomania que era mega tendência da época.
Em 1999, em mais um momento inspirado, Ford teve a ideia de relançar a clássica bolsa Jackie em materiais e cores variadas. Ao fazer isso, ele a transformou em objeto de desejo instantâneo e inaugurou o fenômeno das it bags, que dominaria a virada do milênio.
Apesar da estética provocativa que dividia opiniões, o sucesso da marca sob a tutela ousada de Tom Ford é indiscutível e catapultou a Gucci de volta aos tempos áureos.
Ford deixou o posto em 2004, sendo eventualmente substituído por Frida Giannini em 2006. A italiana ocupou o cargo por nove anos, com uma performance marcada por altos e baixos. Apesar de suas coleções terem obtido certo êxito comercial, ela não conseguiu trazer um ponto de vista claro e identidade definida para a marca, que acabou novamente em posição estagnada e precisando urgentemente de atualização. A solução foi encontrada em 2015, com a surpreendente escolha de Alessandro Michele no papel de novo diretor criativo.
_a era alessandro michele
Desconhecido do grande público, Michele já trabalhava na Gucci há 12 anos quando foi escolhido para assumir o cargo principal com a difícil tarefa de reinventar a marca e torná-la atraente e relevante para uma nova geração exigente e ultraconectada.
Missão cumprida com louvor, conquistada através da combinação de um maximalismo nostálgico, que honra o legado histórico da marca, mas adaptado para os tempos modernos.
Seu primeiro gesto no cargo já demonstra a atitude determinada e disposição para sacudir as estruturas. Uma semana antes do desfile, ele descartou inteiramente a coleção masculina desenhada por Frida Giannini optando por produzir uma completamente nova no prazo de cinco dias.
Liberdade é palavra-chave para entender suas propostas. Michele está em busca de transparência e focado em transcender, ultrapassando padrões usuais, desafiando conceitos de beleza tradicionais e celebrando diferenças com naturalidade e autenticidade.
Isso pode ser observado em seu talento para reunir inspirações de fontes impossivelmente diversas - entre suas favoritas estão arte renascentista, esportes, street style e cultura geek - e organizá-las de forma única, alimentando a vibe meio kitsch, meio vintage em um caos poético que resulta em um mosaico de cores, estampas e texturas já sinônimo com a atual encarnação da Gucci. Mas, não se distraia pela exuberância do conjunto.
Por trás da estética excêntrica cuidadosamente cultivada, existe um tino para negócios igualmente impressionante. O grande trunfo de Alessandro e seu time está na capacidade de traduzir esse universo riquíssimo em produtos que geram desejo e tem apelo global, como as bolsas GG Marmont e Dyonisus, as jaquetas bombers estampadas, o moletom com logo e o tênis Ace, para citar apenas alguns exemplos de best-sellers lançados desde sua entrada.
O faro para business aparece também nas colaborações incrivelmente bem-sucedida e em crossovers com outras marcas, das mais consagradas às mais inusitadas como Disney, Liberty London, North Face e o popular personagem de mangá japonês, Doraemon.
Apesar do ar retrô, que permeia suas criações no campo das ideias, Michele é decididamente progressista e sua preocupação com sustentabilidade e inclusão são percebidas através de ações concretas. Um exemplo disso é a decisão de parar de trabalhar com pele animal em 2018, bem como a linha Gucci Off The Grid, que utiliza materiais reciclados de origem biológica.
Essas mudanças também aparecem na escolha da própria equipe da marca para modelar a última coleção Resort, dando a oportunidade de mostrar que representatividade vai além da performance ótica e existe dentro do time criativo. A inclusão também foi vista na recente campanha de Gucci beauty, que contou com casting diverso de modelos encontrados através do Instagram.
A relevância da Gucci também é resultado da rede de embaixadores e porta-vozes, cuidadosamente selecionados para representar as ideias e causas apoiadas pela marca. Desde personalidades da indústria criativa e das artes plásticas a astros do cinema e da música, passando por atletas e ativistas sociais. É essa a mistura que forma o seleto e variado time.
Entre eles, o muso principal de Alessandro é o cantor Harry Styles, que personifica a moda genderless, a fluidez e a celebração da liberdade de expressão com toque de glamour, tudo a ver com o visão priorizada pela grife. Aliás, basta uma rápida visita ao Instagram pessoal do próprio diretor criativo para entender o segredo de seu ponto de vista tão bem delineado. Sua vida é exemplo perfeito do clima bucólico, romântico e nostálgico oferecido pela grife, legitimando a estética de forma genuína e orgânica.
Com atitudes que desafiam o status quo e a propagação de mensagens importantes, que transcendem o mundo da moda, a visão de Michele inspirou o nascimento de uma verdadeira comunidade de fãs que se identifica e se sente representada pelos posicionamentos defendidos pela marca, sempre em sintonia com as preocupações que movem a juventude atual.
Durante a pandemia, a Gucci anunciou a saída do calendário tradicional de moda, com a decisão de apresentar apenas duas coleções por ano, contemplando as propostas para moda masculina e feminina, sem estação definida e em formatos diferenciados. A primeira amostra veio através do Gucci fest, evento completamente digital ocorrido em novembro passado, uma espécie de festival de cinema composto por sete curtas metragens dirigidos pelo cineasta cult Gus Van Sant, lançados ao longo de uma semana, com o intuito de apresentar as propostas da marca para a temporada.
A Gucci de Michele está completamente inserida no mundo digital desde sua concepção, sendo uma das marcas de luxo com maior presença nas redes sociais e pioneira em diversas tendências e iniciativas tecnológicas. A mais recente e curiosa é o lançamento da coleção Gucci virtual 25, formada por tênis completamente digitais que só existem virtualmente e podem ser "usados" através de filtros em AR (realidade aumentada). Os produtos custam entre nove e 12 dólares.
Estilo e substância se encontram na fase atual da marca centenária, que mesmo adorando um glamour old school e conservando a tradição da excelência da produção artesanal italiana, não para nunca de se questionar e se reinventar, tornando cada vez mais moderna.
_para assistir
Em breve, o filme inspirado na história da família Gucci e o que já está online: Ouverture of something that never ended, o filme composto por sete curtas feitos para apresentar a última coleção da Gucci.
Há também o documentário The director, que mostra o dia a dia e o processo de design da então estilista da marca, Frida Giannini.
_para escutar
O Gucci podcast é super eclético e com temas variados. Cada episódio é um diálogo entre colaboradores da marca.
_para ler
"Casa Gucci: uma história de glamour, cobiça, loucura e morte" de Sara G. Forden.
_para seguir
As contas oficias @gucci e @guccibeauty
@alessandro_michele, a conta pessoal do atual diretor criativo.
@tomfordforgucci, conta criada por fãs saudosos da estética da era Tom Ford da marca.
Abaixo, a nossa colaboradora Roberta Weber, faz um breve resumo em vídeo sobre a história por trás da Gucci: