Algumas semanas atrás, quando postamos a matéria "Precisamos falar sobre: Comida" em que a Catha relata toda sua relação com a alimentação, nós recebemos mensagem de uma leitora que nos chamou a atenção - era a Marcela Wolf, 28 anos, administradora. Além do feedback sobre o post que tinha acabado de sair, a conversa expandiu os horizontes e... Aqui estamos!
E menos de 2 anos atrás, Marcela foi diagnosticada com Esclerose Múltipla e sim, este também é um tema que nós precisamos falar. Confesso que, para mim, escrever para esta série de posts aqui no site é sempre um desafio e, a cada oportunidade, aprendo um pouco mais (meu super obrigado a todos os envolvidos, inclusive!). Focando no tema de hoje, antes de sentar, de fato, para realizar a entrevista com a nossa leitora, pesquisei ao máximo sobre o tema, afinal era o mínimo de preparo e respeito que eu podia garantir para esse papo com ela e eu sabia que já tinha ouvido falar sobre esta doença, mas... "o será que ela é mesmo?!".
A pesquisa foi importantíssima mas me senti 1000% mais a par desta doença, também muito conhecida pela abreviação EM, quando ouvi tudo que a Marcela se dispôs a compartilhar comigo. Por esta razão, aqui meu objetivo não é apresentar todas as descrições e características mais técnicas, mas, sim, passar a fala total para essa mulher, que é um exemplo e tanto para a força que precisamos sempre encontrar dentro de nós mesmas, seja diante de um diagnóstico desse, como qualquer outro contexto em que se manter de pé e pronta para encarar o que for preciso se mostre necessário. Com toda a gratidão por essa entrevista, convido vocês a conhecerem mais sobre a Esclerose Múltipla e a história de Marcela com sua fala na íntegra:
"A esclerose múltipla é uma doença auto imune que ataca o sistema nervoso central. Lembra no colégio que aprendemos que existe a bainha de mielina que é tipo uma fita isolante que envolve os nervos? Então, na EM o meu corpo ataca a bainha de mielina e isso pode gerar muitos sintomas diferentes."
"No meu caso, eu sinto formigamentos (principalmente nas pernas), choques e “agulhadas” pelo corpo. Ela é uma doença muito particular e cada pessoa sente uma coisa diferente. A que eu tenho é do tipo remitente recorrente; isso significa que a doença tem períodos de remissão, quando os sintomas estão controlados, mas que ela pode ter períodos em que os sintomas ficam agudos (o famoso surto). O surto é a fase aguda da doença e o tratamento realizado é a pulsoterapia que são altas doses de corticóides. No início, eu era mais assustada com essas sensações, pois achava que poderia ser outro surto. Hoje, eu sinto que estou mais “tranquila” em relação a isso. É uma sensação chata, mas não me impede de fazer o que preciso.
Quanto ao tratamento, eu recebo a aplicação mensal de um remédio que é realizada em um centro de infusão. Uma vez por mês eu vou lá e tomo a medicação. Tudo isso leva umas duas horas. Eu não sinto efeito colateral, então posso trabalhar normalmente depois. Eu tenho muita sorte de conseguir o remédio pelo meu seguro saúde, pois a grande maioria das pessoas precisa ir até uma farmácia de alto custo para pegar o remédio e muitas vezes pode acontecer do medicamento estar em falta."
"Comecei a sentir sintomas em 2016, mas não prestava muita atenção porque eles apareciam e sumiam. Eu lembro de abaixar a cabeça e sentir um formigamento que começava no pescoço e ia até as pontas dos dedos das mãos. Um dia, tomando banho, eu senti uma dor e fraqueza muito grande no braço esquerdo e até pensei que estivesse infartando! Eu me dava conta daquelas sensações e pensava “estranho, mas deve ser normal” e, como passava, eu esquecia - no fundo, eu tinha a sensação de ser algo ruim, então tinha muito medo de ir atrás.
Em fevereiro de 2018, eu estava em casa e, quando fui me olhar no espelho, vi meu olho direito “caído”. Eu me assustei e pensei que pudesse ser um AVC ou algo do tipo. Fui para o hospital e essa hipótese foi descartada. Fiquei na emergência para fazer a medicação e me mandaram para a casa com uma receita de colírio e alguns outros remédios. Em nenhum momento me pediram mais exames ou sugeriram de eu procurar um neurologista. Quem falou isso foi minha mãe e eu quase não fui, eu pensava que era besteira ir ao neurologista por causa daquilo. Por insistência, acabei indo. Saí da consulta com um milhão de exames de sangue e ressonâncias magnéticas para fazer e, quando os fiz, já queria saber o resultado, mesmo sem voltar ao médico. Fui pesquisar no Dr. Google umas palavras estranhas que apareceram nos laudos das ressonâncias: lesões de natureza desmielinizante. Primeiro resultado: esclerose múltipla. Acabei marcando consulta com outro neurologista no mesmo dia e então no dia 24 de fevereiro eu tive o diagnóstico de EM. Naquele momento eu chorei e fiquei muito assustada. Estava acompanhada do meu marido (na época noivo) e do meu pai; o médico explicava sobre a doença, sobre o tratamento, mas eu acho que metade do que ele falou eu não gravei. O meu maior medo era contar para a minha família. Eu lembro de sentir um sentimento de culpa, de pensar “eu vou ser um peso” e “eu estou causando sofrimento nas pessoas”.
Um mês após o diagnóstico e já fazendo o tratamento, tive o meu primeiro surto. O surto não é uma coisa que acontece de uma hora para outra e eu fiquei com muito medo de estar imaginando tudo. Um ponto muito importante, é ter um médico de confiança e que saiba escutar e entender o que estamos sentindo, afinal cada paciente sente os seus sintomas de forma diferente. Saí do consultório direto para o hospital onde fiquei uma semana. A pulsoterapia é um tratamento feito com altas doses de corticóides, então os efeitos colaterais são bem ruins, principalmente o inchaço e as espinhas. Quando eu estava no hospital, eu me lembro de pensar “eu não deveria estar aqui, eu tenho 27 anos, não era pra isso estar acontecendo!”. Na época eu ainda não estava trabalhando, então tudo colaborava para eu me sentir péssima. No hospital, tive que desmarcar uma entrevista de emprego (isso me deu um pouco de noção sobre o que é ter uma doença incerta e que pode mudar os planos de uma hora para outra), mas no final deu tudo certo: eu fiz a entrevista logo que tive alta e consegui a vaga.
Após esse "episódio", eu comecei a perceber a “realidade” da doença e tinha muito medo de ter outro surto no dia do meu casamento - fazia cenários horríveis na minha cabeça onde todos estariam me esperando e eu estaria mais uma vez no hospital. Eu estava de casamento marcado para setembro e nada do que estava acontecendo parecia combinar com isso. Nada disso aconteceu. Eu casei no dia primeiro de setembro e, um dia antes de viajar de lua de mel, fiz a aplicação da medicação.
"Eu não sei se consigo explicar, mas a sensação tenho é que a EM já fazia parte da minha vida de alguma maneira e que ela foi diagnosticada no momento exato em que eu poderia receber a ajuda necessária para me desenvolver. Uns quatro dias após o diagnóstico, eu comecei a fazer terapia. Eu pensava “eu PRECISO falar com alguém, eu PRECISO entender o que é tudo isso”. Meu médico que indicou a psicóloga e eu só consigo entender como um encontro do destino mesmo. Acontece que a EM é a pontinha do iceberg e, na terapia, eu estou trabalhando muitas outras questões e tudo se relaciona.
Comecei a me entender melhor. Por muitos anos eu odiei o meu corpo e tive um relacionamento muito ruim com ele. Nunca era bom o bastante, sempre podia ser melhor, isso me causava muito sofrimento. Em relação aos sentimentos, eu era uma pessoa muito tensa, eu sempre tinha que estar no controle. A EM está me ensinando que não adianta sofrer por essas coisas, não adianta eu me “preocupar”. Para que serve eu sofrer por um possível novo surto? Eu só vou gastar minhas energias com algo que talvez nem aconteça. De maneira geral, acho que eu estou vendo a vida de outra forma. Eu achava clichê aqueles relatos de pessoas que quase morrem e daí mudam a vida drasticamente. A EM não vai me matar, mas eu senti esse impulso de mudança, essa vontade de fazer diferente."
"Eu acho que é um sentimento constante de frustração, pois muitas pessoas não sabem como agir em relação à EM. Muitas vezes as pessoas não perguntam de fato como eu estou, elas já vão (tentando) afirmar, “você tá bem, né?”; isso é muito diferente de perguntar “como você tá?”. Sinto que as pessoas não entendem como lidar com a doença e imagino que elas pensam que, por eu aparentar estar bem, então "está" tudo ótimo e elas não precisam tocar nesse assunto."
"Eu tenho certeza que a EM apareceu na minha vida para me fazer enxergar tudo de forma diferente. Eu nunca fui muito ligada à religião, mas isso é algo que está crescendo dentro de mim. Pode parecer que eu só tenho gratidão, mas não é verdade. Muitas vezes eu fico ansiosa quando penso que eu tenho uma doença que é incerta. Eu posso não sentir mais nada o resto da vida, como posso ter um surto e não conseguir mais caminhar. E esse sentimento faz parte e nós precisamos nos permitir sentir. Até uns dias atrás eu estava em um estado de negação eu acho. Eu penso em alguns momentos do ano que passou (minha internação, meus resultados dos exames) e parece que nada aconteceu de verdade. Agora, que eu estou começando a olhar mais para tudo isso. Minha terapeuta fala que “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come e se olhar o bicho some”. Isso é muito verdadeiro! No momento que eu falo “eu tenho esclerose múltipla”, a doença parece que fica menor e menos assustadora. Eu tenho esclerose múltipla, assim como eu tenho cabelo castanho, olhos escuros e 1,59cm de altura. É muito difícil, mas a doença não deve ocupar toda a nossa vida. Isso tudo é um processo e ninguém deve se obrigar a sentir algo que não está preparado. (Hoje, eu escrevi isso, mas amanhã posso estar com um sentimento totalmente diferente e não tem nada de errado com isso.)"
"Para ela ser mais verdadeira com ela mesma. Por muito tempo eu tentei me enquadrar em um padrão que eu achava ser o ideal e isso me trouxe muito sofrimento. Quando nós somos verdadeiros conosco, tudo parece entrar em um fluxo e se encaixar naturalmente. A grande maioria das pessoas (eu, com certeza) tem muito apego ao sofrimento, ao drama; então, se as coisas estão fluindo melhor, logo elas querem achar algo ruim para sofrer. Eu constantemente preciso falar para mim mesma que, mesmo sem o sofrimento, eu sou merecedora de tudo aquilo que eu estou colhendo hoje. Isso é uma tarefa bastante difícil!"