O trap carioca passou uma popularização nos últimos anos, que resultou na ascensão de grandes nomes. Com esse movimento, surgiu um novo olhar para a cena, inclusive da indústria da moda, já que o estilo desses artistas — que representam, muitas vezes, a cultura periférica — se tornaram tão populares quanto eles.
É claro que esses dois mundos sempre estiveram conectados, porém, essa abertura da indústria para a cena ainda se dá aos poucos. Já os artistas, estão cada vez mais abertos a experimentar com a moda, o que une ainda mais as duas áreas.
Para contar os bastidores de todo esse processo e conexão do trap com a moda, conversamos com Daniele Fernandes, que atualmente atua como stylist, diretora criativa e desenvolve a imagem de dois artistas fortes na cena: Filipe Ret e TZ da Coronel. Vem conferir nosso papo:
Leia também: Como o hip hop se tornou uma das maiores influências na moda

STL: Como você começou a trabalhar com styling, mais especificamente de trappers?
D.F.: “Eu comecei trabalhando em uma agência de modelo, como booker. Eu cuidava ali da preparação dos modelos, do desenvolvimento de imagem, até os trabalhos de revistas ou campanhas. E aí, foram 15 anos dentro dessa profissão, mas chegou um momento que eu pensei que precisava fazer algo para mim, parar de trabalhar para os outros e criar algo meu. Então, eu peguei toda essa bagagem que eu já tinha e a partir das coisas que eu era boa — movimento de carreira e desenvolvimento de imagem — decidi fazer esse desenvolvimento de imagem com artistas.
Eu precisava ter um nicho, porque não queria que fosse amplo, sabe? Comecei a estudar sobre o mercado e, naquele momento, há dois anos e meio atrás, eu vi que o cenário do trap tinha um potencial gigantesco e ele não era muito explorado. Tinham pessoas que faziam styling, mas não nesse olhar de desenvolvimento de imagem.
Por fim, decidi que iria trabalhar no trap e apenas com homens. Me joguei, resolvi tentar e ver como seria a abertura para isso, porque como não se tinha muito sobre isso, as pessoas também não entendiam essa necessidade. A partir do momento que eu fui explicando, conversando, mostrando também, de fato, que as coisas poderiam acontecer, eu consegui entrar. Primeiro fiz uns trabalhos pontuais com o Derek, depois, de fato, o trabalho de desenvolvimento de imagem se iniciou com o Filipe Ret e, quatro meses depois, com o TZ da Coronel.”
STL: Como foi o processo de desenvolvimento de imagem do Filipe Ret e TZ da Coronel?
D.F.: “A gente foi fazendo um processo de construção que foi demorado, não foi fácil, porque, mais uma vez, por não ter tanto esse approach da cena, tanto entre os artistas quanto com outros profissionais, o cenário da moda também não enxergava o cenário do trap como uma possibilidade, né? Então isso foi ganhando notoriedade com o tempo, porque outros artistas começaram a se interessar por moda e buscar outros profissionais para que fizessem isso por eles também. Então eu vejo que hoje está muito mais fácil do que esteve há dois anos e meio atrás. E aí eu comecei a criar links dos artistas com marcas, marcas nacionais, marcas internacionais, criar links dos artistas com revistas de moda, seja para capa, seja editorial, seja uma matéria falando sobre moda… e isso foi ganhando proporção, foi ganhando espaço e o pessoal da moda enxergando mais os artistas.
Depois disso é que comecei a fazer o styling deles, porque uma coisa é muito linkada à outra. Para eu conseguir fazer esse desenvolvimento de imagem, eu preciso que tenha um styling muito bom que remeta a isso. Primeiro foi com o TZ, porque o Ret já tinha uma stylist e a gente trabalhava em conjunto, mas com o tempo ela acabou saindo e eu assumi o styling dele também.”

STL: A cena do rap e trap sempre foi muito forte na moda, mas era algo mais orgânico. Como foi essa virada de chave para uma imagem mais estratégica? Como que você vê, não só no seu trabalho, mas no mercado em geral, essa mudança?
D.F.: “Eu sinto que antes faltava ter pessoas que mostrassem a importância da moda dentro da cena, porque, no fundo, tudo se resume à arte. Elas andam muito linkadas, a moda e a música, uma se soma com a outra e se deixa mais forte.
Nós profissionais fomos cada vez mais mostrando isso para os artistas e quanto mais pessoas começaram a fazer, foi criando uma rede de pessoas interessadas em moda dentro dos cenários do trap. Consequentemente, isso acabou atraindo o olhar da indústria da moda. As marcas começaram a olhar mais, marcas de alto luxo começaram a se interessar pelas pessoas do rap, por conta não só da imagem, mas também pela história que eles passam, a comunicação que eles colocam. Esse link, então, começou a existir de uma maneira mais fluida, mais orgânica. Ainda é difícil você conseguir essa associação de algumas marcas com o trap, principalmente marcas internacionais, mas muita coisa mudou, muita coisa mesmo.
No geral, o cenário do trap cresceu muito, principalmente o trap carioca. Temos muitos nomes e essa popularização também ajudou nessa parte da moda também. Musicalmente, quando você começa a atingir nichos diferentes, você acaba saindo da sua bolha, atrai mais olhares, né? E quando você une essa atração de olhares novos e consegue colocar um brilho diferente, as pessoas começam a te olhar ali por diversos segmentos.”
STL: Você acha que também rolou um interesse maior dos artistas em experimentar coisas novas com a moda e se expressar de outras formas a partir dela?
D.F.: “Com certeza! Como não era algo normal na cena esse tema, os próprios artistas tinham receio de como o público ia lidar com isso. Por isso a gente tem um método de trabalho que é: nunca tirar a essência e a personalidade dos artistas. A gente começa a somar dentro do que eles gostam, vai testando e vendo como isso vai ser. Fizemos dessa forma, fomos devagar, para que o público entendesse e a gente conseguisse ousar cada vez um pouco mais, de uma forma orgânica e natural, e que eles gostassem de fazer.
STL: Como é construir uma imagem de moda a partir do trabalho deles?
D.F.: “Eu sempre priorizo manter a personalidade, a essência. E aí entra o gosto pessoal do artista, o que ele gosta hoje, mas é o meu trabalho também mostrar coisas diferentes do que ele gosta hoje e ver se ele se encaixa nisso. Então é um mix de informações, coisas que fazem parte do estilo dele, mas também têm uma informação de moda ali diferente do que eles estavam acostumados a usar, seja ela por corte, seja tecido, seja modelagem… isso conta muito.
Eu vou sempre observando o que está acontecendo no mercado, tanto nas marcas quanto em relação à modelagem, corte, o que está rolando, quais são as tendências. A partir disso, eu levo o que está mais perto da realidade deles. Por fim, eles fazem o filtro deles.”

STL: Quais são os desafios de construir uma imagem de moda forte, principalmente dentro do trap?
D.F.: “Eu acho que o principal desafio é trazer informação de moda e manter a essência do começo da carreira, porque a moda é mais ousada, requer muito que você se arrisque. Só que isso dentro da cena do trap era muito difícil, porque como faltava profissionais de moda dentro do cenário, os artistas não tinham essa vontade de ousar. Hoje eles estão dispostos a isso e acaba facilitando o nosso trabalho e o olhar de pessoas fora do circuito. Além disso, o público também começou a absorver esse tipo de informação e entender melhor, ainda que aos poucos. Mas ainda tem que ter cuidado para conseguir trazer uma imagem de moda sem tomar hate.”
STL: Qual é a diferença entre o styling que você faz ou para o palco, ou para um evento, para, por exemplo, um clipe, ou uma campanha?
D.F.: “No processo da criação do clipe, de um editorial, capa de álbum, ou qualquer coisa que se torna imagem, a gente acaba conseguindo ousar um pouco mais. Primeiro, porque a gente precisa construir uma imagem forte e de impacto. Para o show, a gente acaba não ousando tanto, porque existem limitações de tempo, se está calor ou frio, limitação de espaço, porque eles precisam de mobilidade, movimento para conseguir dar o melhor de si, já que o que eles mais precisam entregar é a voz. Então, eles precisam estar extremamente confortáveis.
A exceção são os grandes festivais que são muito midiáticos, como Rock in Rio, Lollapalooza. Nestes casos, sabemos que cada um vai ter que ceder um pouco na hora de escolher as roupas.”