Pessoas pretas, especialmente as mulheres, sempre viveram com um estereótipo, que as faziam acreditar não serem dignas de amor. Com corpos hipersexualizados e que supostamente eram ótimos para trabalhos braçais, o racismo fez com que essas pessoas acreditassem que o afeto não as pertenciam. Por outro lado, vemos a sociedade alegando que o amor salva, que traz força e dignidade, logo não deveria ocorrer o mesmo com pessoas negras? É então que surge o termo amor preto que começou a circular pela internet há pouco tempo, mas a força e importância dele é grande.
Amor preto se refere a casais formados por duas pessoas pretas, que escolheram dividir a vida, e é um conceito amplo, que vai além do lado romântico. Diversos escritores como Bell Hocks alegam que o amor entre pessoas pretas tem um papel fundamental na disputa política e na sobrevivência da comunidade negra, afinal apenas eles conseguem entender os desafios que encaram em uma sociedade racista. O amor preto é sobre não se encaixar no que seriam os padrões de um relacionamento criado pelos brancos, é sobre ter alguém que além de dividir as alegrias, dividirá e entenderá também suas dores.
O genocídio dentro da comunidade negra é enorme e é impossível recortar isso quando falamos de relacionamentos, principalmente para quem se relaciona com um homem preto, que são as maiores vítimas da violência. O amor preto é sobre relação mãe e filho que preocupa se a saída do filho também terá volta, é sobre a companheira ou companheiro encarar o medo diário das injúrias que seu amado pode sofrer na rua. É sobre redefinição do que é o amor, é sobre apoio e troca. Por isso, hoje convidamos três casais para dividirem um pouco sobre a relação e responder: afinal, o amor preto cura?
bruno e zé
O fotógrafo Bruno Granato, de 27 anos, namora o Zé, 34, há cinco anos e foram unidos pelo afeto e amor pela moda e fotografia. A história de amor deles passa por várias vertentes, mas sempre mostrando que eles podem ser inspiração para outras pessoas. Para José, “em um mundo historicamente pensado para fazer com que nós pretos estejamos divididos, o amor preto é um ato político”. Bruno ainda acrescenta que negros se amando tornam possíveis outras histórias de amor, “acredito que casais afrocentrados se tornam inspiração para outras pessoas. Representação e referência de afeto e carinho”.
Além da paixão pela moda, o casal sonha em construir um futuro juntos, onde cada vez mais terão chance de viver a conexão que sentem em entender um ao outro apenas com o olhar.
o amor preto cura?
Para José, toda forma de amor cura, o amor preto, então é libertação. " O amor negro cura e liberta! Nos dá esperança e energia… É quase dopamina. E ele se reflete em todos nós", acrescenta Bruno.
clau e gabriel
A Claudiana Ribeiro, 26 anos, namora o Gabriel, 29, há três anos e este ano eles ficaram noivos. Para ela, o relacionamento entre pessoas pretas é mais fácil, já que não tem medo das falas ou da família. “Eu sempre me questionei muito se deveria me relacionar com uma pessoa branca ou asiática, e me imaginar chegando na casa da pessoa e encarando o choque da família - isso é na minha cabeça - mas em um relacionamento preto, parece que você sempre esteve ali”, relata Clau. O fato de um entender as dores do outro é outro fator importante na relação, “já tiveram vezes do Gabriel notar que eu estava sendo discriminada e lutou por mim. Não que um relacionamento interacial não vai ter alguém lutando por você, pode acontecer da pessoa notar um comentário desagradável e olhares também, mas quando se é preto você nota, reage e consola de uma forma diferente”, conta.
Clau e Gabriel são conectados pelas suas personalidades diferentes, ele mais calmo e racional, ela impulsiva e engraçada, além da vontade de construir uma família, através de um espaço sem julgamentos A chance de estarem juntos, em silêncio ou falando por horas ajuda a criar ainda mais intimidade entre os dois, que ainda oferece a janela para eles dividirem sobre suas experiências e visões de mundo. Isso faz com que Clau busque entender ainda mais quais são os desafios que o Gabriel encara como um homem negro, “nunca que eu como mulher negra, entenderia 100% o que um homem negro passa e diariamente eu tenho questionamentos com o Gabriel sobre todo esse assunto, curiosidade do mundo masculino e também do mundo masculino negro, eu acho uma troca muito boa e que eu não teria se tivesse em um relacionamento interacial. Se eu tivesse um filho desse relacionamento (com um homem branco) e fosse um menino negro, eu não teria como passar essas informações”, compartilha ela.
o amor preto cura?
Clau possui certeza que o amor preto cura, pela troca sincera e maneiras que se enxergam. “O amor em si já cura, mas um amor no qual ambos se enxergam faz tanta diferença que eu nem sei explicar. Eu sou muito feliz em ter alguém que sabe como me auxiliar em momentos de fraqueza e que eu me entende de uma forma que talvez uma pessoa branca não entenderia. Digo pessoa branca pois sabemos que são os únicos que não são apedrejados diariamente”, finaliza.
joicy e mariana
A jornalista Joicy Eleiny, de 24 anos, namora a Mariana Tayná, de 23, há três anos, tempo em que compartilham suas vivências como mulheres negras, pertencentes à classe LBGTQIA+ e todos os outros desafios e alegrias que encaram na vida. Elas enxergam as experiências que vivem juntas como algo além delas mesmas, que é sim importante entender e conhecer cada detalhe da outra pessoa, mas tem coisas que vão além disso. “Todo o plano de fundo que faz você ser quem você é, incluindo os processos que te trouxeram até aqui e a sua carga ancestral. Por isso, o amor preto é tão poderoso, porque ele me conecta com uma outra mulher preta, na qual eu reconheço potência, eu divido vivências, eu vejo parte da minha própria história, mas eu entendo também novos recortes dentro da nossa pluralidade”, compartilha Joicy.
Conhecer um pouco da história de Joicy e Mariana, nos ajuda também a compreender a força do amor preto e as conexões que acontecem antes do contato físico. Mariana conheceu sua companheira através do Youtube, enquanto ela estava em transição capilar e buscava dicas para cuidar do próprio cabelo, “nessa época eu tinha acabado de fazer o Big Chop e já falava sobre isso no meu canal, então ela me acompanhava e nos encontramos por acaso em um evento, mas só depois de dois anos, através de amigos em comum, foi que nos conhecemos melhor e começamos a namorar mesmo”, conta Joicy.
o amor preto é tão poderoso, porque ele me conecta com uma outra mulher preta, na qual eu reconheço potência, eu divido vivências, eu vejo parte da minha própria história, mas eu entendo também novos recortes dentro da nossa pluralidade
“Achamos forte falar disso, porque de uma forma muito natural a nossa vivência enquanto mulher preta, através da transição capilar, que é um processo tão sensível e tão importante pra nós, já nos conectava. O amor preto nos traz conforto pra falar de situações que já vivemos ou que nos incomodam, tendo a certeza de que seremos compreendidas, porque do outro lado tem alguém que também já viveu e já sentiu na pele. Ao mesmo tempo que é acolhedor, pode ser triste, porque em muitos momentos nos conectamos pela dor da violência racial lançada sob os nossos corpos de diversas formas”, compartilha Joicy.
o amor preto cura?
Joicy e Mariana não possuem dúvida ao afirmar que o amor preto cura. "Muitas das dores que carregamos ao longo da vida falam sobre a ideia de não pertencimento e encontrar alguém que enxerga, ama e enaltece cada traço seu, a textura do seu cabelo, o tamanho da sua boca, alguém que te admira por tudo que você já conquistou, que sente de verdade por tudo que você já passou, que reconhece a sua força, mas também te mostra que você tem o direito de descansar, de respirar, de não ser tão forte assim, alguém que te faz sentir digna de sentimentos que nos foram negados historicamente, que respeita a totalidade de quem você é e a sua singularidade, mesmo dentro de uma comunidade... Tudo isso é capaz de, pouco a pouco, remediar os adoecimentos aos quais o racismo nos submete."