Há um bom tempo, tenho feito um exercício diário de checar meus privilégios. De classe média, cresci em um ambiente familiar estável, emocionalmente e financeiramente. Tive acesso à cultura e educação de qualidade por toda a minha vida. Sou branca em um país estruturalmente racista, cisgênero e heterossexual em uma sociedade LGBTfóbica e magra em um sistema de moda que impõe padrões estéticos extremamente rígidos e limitados. Ao longo da quarentena, eu ainda posso me dar ao luxo de trabalhar de casa, sem prejuízos e com conforto, apesar dos ajustes na rotina. Deu tudo certo para mim.
Mas não deu tudo certo e, durante a pandemia, a situação piorou muito para inúmeras mulheres ao redor o mundo. Para elas, fazer o isolamento social e ficar em casa com o marido para evitar o contágio do coronavírus se tornou um pesadelo real. De acordo com o levantamento Violência doméstica durante a pandemia de Covid-19 realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os casos de feminicídio tiveram um crescimento de 100% no Acre, 400% no Mato Grosso, 300% no Rio Grande do Norte e 46,2% em São Paulo, somente no mês de março de 2020 comparado ao mesmo período em 2019. Além disso, uma pesquisa do Ministério Público de São Paulo comprova que 66% dos feminicídios consumados ou tentados foram praticados na casa da vítima.
Também em março, a ONU Mulheres lançou o documento Gênero e Covid-19 na América Latina e no Caribe: dimensões de Gênero na resposta, onde apresenta 14 orientações para minimizar os impactos da pandemia causados às mulheres. Segundo o levantamento, “enfrentar uma quarentena é um desafio para todos, mas para mulheres em situação de vulnerabilidade pode ser trágico. No Brasil, onde a população feminina sofre violência a cada quatro minutos e em que 43% dos casos acontecem dentro de casa, essa preocupação é real”. No Brasil, a falta de proteção contra a violência doméstica em tempos de isolamento se soma a uma série falhas e inexistência de medidas por parte do governo federal para garantir dignidade e segurança para a população.
Contudo, os números não param por aí, segundo a OMS - Organização Mundial da Saúde, 1 em cada 3 mulheres no mundo já sofreu algum tipo de violência física ou sexual em casa, em suas comunidades ou no ambiente de trabalho. O Atlas da Violência 2019, por sua vez, indica que 13 mulheres foram assassinadas por dia no Brasil em 2017, totalizando 4.936 casos de homicídios de mulheres. Mas a violência não atinge todas as mulheres de forma igual. O mesmo estudo aponta que a violência contra a mulher também apresenta um retrato da desigualdade racial no país, sendo que do total de assassinatos em 2017, 66% eram mulheres negras. E enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras teve crescimento de 4,5% entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 29,9% no mesmo período. Ainda, os dados levantados sobre o homicídio da população LGBT mostram que, entre 2016 e 2017, houve um aumento de 127% nos homicídios contra gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros.
Mas a discussão em torno do feminicídio pode ir mais adiante. De acordo com a demógrafa Jackeline Aparecida Ferreira Romio, que realizou um trabalho de diagnóstico dos feminicídios no Brasil, há uma nova tipologia dos feminicídios: feminicídio doméstico (no espaço da residência); reprodutivo (mortes por aborto); e sexual (quando a morte decorre da violência sexual). Em relação ao feminicídio reprodutivo, a pesquisadora observa que “a falta de garantias ao aborto legal acaba se configurando em um fator indireto que colabora para o aumento dos feminicídios reprodutivos no país”, chamando a atenção para um sistema legal que violenta a mulher por meio do controle social sobre seu corpo. Além de manter poder sobre as mulheres, a proibição do aborto, não é uma medida eficaz contra a prática, já que a proibição legal não detém o número de abortos realizados, mas faz com que as mulheres procurem clínicas ilegais ou métodos caseiros, e ambos podem ser perigosos e coloca-las em risco de morte.
No entanto, a escritora e feminista Bell Hooks argumenta que, enquanto se discute muito sobre o abuso físico extremo de mulheres por homens, não há muito debate sobre os impactos que um incidente de agressão pode ter em uma pessoa em um relacionamento íntimo ou como a mulher agredida se recupera dessa experiência. A autora, ainda destaca que “dada a natureza do patriarcado, tem sido necessário para feministas salientar casos extremos para fazer as pessoas confrontarem e reconhecerem o assunto como sério e relevante.” Ou seja, uma sociedade patriarcal, por essência, coloca as mulheres em situação de vulnerabilidade e em risco de violência diária, em diferentes contextos de suas vidas, não só nas relações íntimas e pessoais, mas também nas de trabalho e sociais, fazendo com que agressões “menores” (sejam elas físicas, verbais ou psicológicas), sejam normalizadas e passem despercebidas por serem estruturalizadas.
Talvez por isso o feminismo incomode mais que o feminicídio. Porque enquanto o feminicídio está previsto no Código Penal e pode colocar os agressores na cadeia, o feminismo abrange uma luta muito maior: erradicar as desigualdades sociais, o racismo, a xenofobia, a LGBTfobia e o colonialismo. Igualmente, o feminismo pautado em questões sociais e ecológicas briga por justiça ambiental e acesso a direitos básicos como saúde, educação, habitação e transporte. Um feminismo que “olha para os 99%” não se contenta somente com a representatividade das mulheres em posições de liderança nas empresas, uma vez que, moradia inacessível, salários precários, saúde pública e mudanças climáticas, entre outras questões, são as que mais afetam a grande maioria das mulheres no mundo. De acordo com as autoras do Feminismo para os 99%: um manifesto, tais conflitos sempre foram centrais em uma sociedade capitalista. Ainda, de acordo com o manifesto, em tempos de crise, quando a ansiedade do status, a precariedade econômica e a incerteza política parecem grandes, a ordem do gênero também parece estremecer.
Quando se enxerga a dimensão do feminismo por meio dessas dessa transversalidade, ele passa a compreender uma verdadeira revolução. Encarar a proposta de paradigmas alternativos aos atuais – onde vemos que as estruturas rígidas que formam a base de nossa sociedade são perpetuadas pelo patriarcado e capitalismo – certamente causa grande oposição de quem está (e sempre esteve) no poder, controlando, explorando e oprimindo. Em A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo, a professora, pesquisadora e militante Verónica Gago, defende que “a potência feminista é uma teoria alternativa do poder que reivindica a indeterminação do que podemos, pois não sabemos do que somos capazes até deslocarmos os limites que nos fizeram obedecer.” Além disso, a autora explica que, no âmbito econômico, “não se trata simplesmente de ver a diferença para reivindicar a igualdade. Não queremos diminuir a brecha para que sejamos tão exploradas quanto os homens. O que nos interessa e o que permite valorizar uma economia feminista, é a luta que as mulheres, lésbicas, trans e travestis protagonizam pela reprodução da vida contra as relações de exploração e subordinação”.
Portanto, convido você a pensar também em como é possível sustentar e fortalecer a luta de mulheres, lésbicas, trans e travestis, principalmente aquelas invisibilizadas e vulnerabilizadas. São elas as que mais sofrem com as injustiças sociais e ecológicas. Que possamos agir para garantir que suas vozes sejam ouvidas e que seus espaços e redes de apoio sejam resguardados. Sejamos feministas e revolucionárias. Transformemos a nós mesmas e transformemos tudo. Que a gente consiga superar as injustiças da pandemia, do patriarcado e do capitalismo em todas as suas dimensões e transversalidade.
Espero que essas ideias possam servir como catalizadoras de cada vez mais debates e reflexões, em mais grupos e ocupando maiores espaços. Que possamos assim fortalecer os esforços contínuos de tantas mulheres, por tantas décadas, em prol de um mundo mais equitativo e plural, onde os direitos humanos e os direitos da natureza sejam fundamentais e sistêmicos. Precisamos construir hoje a sociedade em que queremos continuar vivendo.
O que podemos fazer agora?
Cuidemos umas das outras:
1. Se ouvir briga no vizinho, se intrometa, toque a campainha, faça barulho, mostre que está ciente.
2. Ligue 180, central de atendimento para a mulher em situação de violência, registre o que aconteceu e peça ajuda.
3. Mantenha contato com a mulhere agredida por telefone diariamente.
4. Converse com ela sem julgamentos e pergunte o que pode fazer para ajudar.
5. Crie uma rede de apoio para ela via WhatsApp.
6. Crie códigos de alerta com ela, para que ela possa avisar sem que o agressor perceba.
7. Passe o contato do @justiceirasoficial, projeto de atendimento online a vítimas de violência no Brasil.
8. Indique a @aina_mulher e ajude outra mulher a sair de um relacionamento abusivo
Serviços de atendimento:
Disque 180: Central de Atendimento à Mulher. Pode ser acessada 24 horas, gratuitamente, de qualquer telefone.
Delegacia da Mulher: todo Estado possui uma delegacia especializada da mulher, que deverá atendê-la, mas qualquer delegacia comum pode atender mulheres em caso de violência doméstica.
Ministério Público: o Ministério Público recebe e encaminha mulheres vítimas de violência doméstica para os serviços necessários.
Delegacia Eletrônica da Polícia Civil. Em São Paulo, desde o dia 25 de março, as vítimas de violência doméstica podem fazer a denúncia online. Injúria, insultos e calúnias podem ser reportados sem a necessidade que a vítima saia de casa.
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) anunciou que lançará o aplicativo Direitos Humanos Brasil para que vítimas possam fazer contato com as autoridades de forma virtual. Por enquanto, é possível registrar ocorrências pelo site do ministério.
Saiba mais sobre outros serviços e iniciativas de combate a violência contra a mulher, nesta plataforma disponibilizada pelas organizações Think Olga e Think Eva.