A importância do upcycling para a moda em 2024

por Ísis Anthero

Sim, eu sei que a essa altura você já ouviu falar de upcycling. Inclusive, já falamos sobre a técnica aqui. Mas, a cada dia o upcycling se populariza ainda mais, ao mesmo tempo que se torna assunto urgente no mercado de moda, que não pode mais ignorar seu impacto brutal nas mudanças climáticas.

Do seu surgimento nos anos 90 até os dias de hoje, muita coisa mudou e dar novos significados e usos às nossas peças se tornou uma demanda não apenas aconselhável, mas necessária. 

Hoje, vamos discutir novamente sobre upcycling, além de explicar a sua importância e, claro, vamos te dar um belo contexto de como a técnica se faz presente nos dias de hoje e em quais marcas. E para incrementar ainda mais, batemos um papo com o Fashion Revolution, movimento global que luta por uma moda que olha para pessoas e para o planeta e com a Gabriela Strinban, dona da marca de upcycling WELLUSED.

_o que é upcycling?

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Foto: @carl.artestyle (Reprodução/Instagram)


O upcycling é, basicamente,  a técnica que dá novos usos a tecidos e peças de roupa que seriam descartados. Através dele, evitamos desperdícios e descartes desnecessários, contribuindo para uma indústria da moda mais ética e com menos impacto negativo no planeta.

Isso porque para produzir o volume colossal de peças novas por ano que o mercado exige - uma estimativa de 100 bilhões! - a indústria da moda fica responsável por até 10% das emissões globais de CO2. De acordo com pesquisa do Sebrae, só no Brasil, produzimos cerca de 170 mil toneladas de resíduos têxteis anualmente e apenas 20% desse material é reciclado.

Com o lema “Reduzir, reutilizar e reciclar”, o upcycling vem caindo cada vez mais nas graças da Gen Z, super atenta às necessidades climáticas e, em um combo infeliz junto às crises financeiras mundiais, vem ganhando cada vez mais popularidade em uma público que precisa economizar e repensar seus hábitos de consumo.

Ainda bem.

_Obroni Wawu October

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Foto: Calcul (Komla S Darku via The Or Foundation)

Um ótimo exemplo da revolução que começa a acontecer, a Obroni Wawy October (OWO), fashion show de upcycling que aconteceu em Gana no ano passado, deve ser levada como exemplo para as fashion weeks do eixo principal.

O evento contou com o desfile de cinco marcas de designers emergentes - Calcul, Nakoi, Xtreet Guidance, OldyBlaq e Antydote - usando apenas resíduos têxteis, e também foi uma celebração da cultura de upcycling, que está presente em Gana há gerações. 

Liz Ricketts, co-fundadora do The Or Foundation, ONG que fomenta o mercado second hand e de upcyling em Gana, falou em um post em seu Instagram:

Nós costumamos dizer que sustentabilidade é uma linguagem. A linguagem pode ser perdida em uma geração e o Norte Global, essencialmente, perdeu ou esqueceu essa linguagem - as pessoas usam roupas meia dúzia de vezes e as doam porque não sabem colocar um botão de volta em suas camisas. Talvez, mais importante do que colocar upcycling no centro, a OWO é um modelo de como a moda pode descentralizar tudo que não é sustentável. Porque mais do que foi falado ou explicado, o valor da OWO está realmente no que não precisa ser dito porque é sentido.

_marcas para ficar de olho

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Foto: Miu Miu (Reprodução/Instagram)

Atualmente muitas marcas vêm se adaptando ao upcycling, trazendo coleções cápsulas, por exemplo, ou até mesmo usando a técnica em toda sua cadeia produtiva. Esses são alguns destaques que estamos de olho:

- A Harper's Bazaar elegeu cinco designers indianos que aplicam o upcycling em suas marcas. São eles: Aneeth Arora da Péro, Ritwik Khanna da Rkive City, Ankit Duggal da Back Alley Bodega, Arnav Malhotra da No Grey Area e Rikki Kher da K Ardo.

- Stella McCartney: a marca homônima da estilista inglesa já é conhecida por sua ecologia e ética cruelty free. Em 2019, Stella desfilou sua primeira coleção em upcycling: vestidos feitos de t-shirts e botas na técnica, parte da campanha para salvar o Leuser Ecosystem, floresta em Sumatra, Indonésia.

- Miu Miu: a grife acaba de lançar uma nova coleção de jeans upcycled. Os tecidos usados são de denim pré ano 2000.

- Reformation: a gigante global tem compromisso em usar tecidos recicláveis em toda a sua produção.

- Patagonia: a marca americana também é conhecida por sua pegada sustentável, utilizando roupas e tecidos antigos para criar novas peças. 

_e no Brasil?

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Foto: Paula Rondon (Reprodução/Instagram)

No Brasil, também vemos esse movimento crescendo, principalmente em marcas menores, mas também é interessante acompanhar gigantes como a FARM seguindo esse caminho.

- Ventana: a Ventana continua sendo uma das marcas mais visadas quando se fala em upcycling no Brasil e, inclusive, desfilou na Semana de Moda de Nova Iorque ano passado.

- FARM: a FARM tem coleções cápsulas recorrentes utilizando sobras de jeans.

- Oficina Muda: já ressignificou cerca de 450 mil peças e utiliza tecidos de marcas como FARM e Cantão.

- Insecta: a marca de moda ecológica e vegana é muito conhecida por seus calçados e reutiliza tecidos na fabricação de suas peças.

- Paula Rondon: a fundadora do B.Luxo criou uma marca de upcycling com seu nome e cria peças únicas com pegada romântica e autêntica.

- Matos Brexo: a marca de upcycling e rework já vestiu nomes como Jade Picon e Boca Rosa.

_Fashion Revolution

Conversamos com a Marina de Luca, Coordenadora de Mobilização do Fashion Revolution Brasil e te entregamos os melhores insights sobre o upcycling atualmente:

STL: Como o upcycling como tendência impactou os números da moda?

F.R.: Com a recente valorização da prática do upcycling, que sabemos que como prática, já acontece há muitos anos dentro de grupos vulneráveis, geralmente racializados e marginalizados, por necessidade e não por tendência (e inclusive sem esse nome norte-americanizado), pudemos acompanhar também a valorização e a percepção da importância de haver números públicos e oficiais sobre o descarte têxtil no Brasil.

A "tendência" do upcycling vem servindo também para que os órgãos públicos, a indústria e também o varejo de moda percebam que é preciso olhar com mais cuidado para a geração e descarte dos resíduos têxteis, e também para a vida útil dos produtos criados e descartados tão rapidamente.

Não conhecemos uma pesquisa que traga números concretos sobre o upcycling, mas vemos surgir, ainda timidamente, pesquisas com números concretos sobre a quantidade de resíduos têxteis pré e pós produção. E a partir do retrato real do sistema de moda é que podemos traçar estratégias para agir nos pontos necessários de forma certeira, sem tapar o sol com a peneira, e também buscando evitar o "greenwashing" do mercado.

Seguimos esperando um relatório público atualizado sobre a produção e descarte de resíduos têxteis no Brasil.

STL: Como vocês entendem a mudança do upcycling na moda do seu surgimento até atualmente? 

FR: Como disse acima, é difícil falar do "surgimento do upcycling", pois a prática de transformar peças descartadas e sem uso em novos produtos estendendo a vida útil dele, é feita há muitos anos, décadas, séculos, eu diria, por grupos em vulnerabilidade.

Em 2002, no livro "Do berço ao Berço" (Cradle to Cradle), o termo "upcycling" foi citado uma das primeiras vezes, e a partir daí algumas pessoas consideram que se tornou uma "tendência" na moda, e passou a ser valorizado também pela mídia, marcas e pessoas consideradas influentes na cultura de moda.

Então poderíamos dizer que esse foi um grande marco na história desta prática ancestral, a transformação dela em "termo de moda", e aplicação dela por outros grupos, que não os criadores. 

Deixo aqui a provocação para que façamos a reflexão sobre como o surgimento deste termo usado para o marketing, vestindo a capa de "grande solução para a moda",  pode refletir o comportamento racista e excludente da moda, ao se apropriar de uma prática antiga para uso comercial, como se fosse novidade, e apagando a história dos que a criaram. (O mesmo acontece quando falamos do poder de remendar peças furadas, ou adquirir novas roupas através de troca e não compra).

Gosto de dizer que esse termo "upcycling" como tendência, se refere à inclusão dessa prática no fluxo de criação e produção dentro da escala industrial da moda. Ou seja, a utilização de uma prática ancestral como aprendizado para soluções atuais dentro do nosso sistema industrial doente.

Além desse marco, acho que podemos também enfatizar outros 2 momentos importantes. O primeiro é o surgimento de nomes, designers e artistas que passaram a trabalhar o upcycling de forma profunda e se tornaram grandes referências inspiradoras e educadoras sobre o uso dessa prática no mercado comercial da moda. Mesmo nadando contra a maré do consumismo, foram pessoas que conseguiram firmar essa prática de forma pública e relevante para se tornar uma tendência. Pessoas que têm todo nosso apoio e admiração.

E o segundo é, alguns anos depois do surgimento desses nomes, a adoção (ainda tímida também) da prática de upcycling por marcas de moda mais tradicionais do mercado brasileiro. 

Além disso, o termo ganhou bastante publicidade e já é bem mais conhecido do público geral, o que ajuda também a despertar o interesse de qualquer pessoa para a urgente necessidade de uma revolução na moda.

STL: Qual é o próximo passo do Brasil em relação ao upcycling? Quais são os nossos maiores desafios?

F.R.: Vejo alguns desafios nesse tema para o Brasil. Poderia citar primeiro a rápida super-produção de peças, em quantidades exageradas e desnecessárias, das nossas marcas e fábricas de moda. Quando colocamos em uma balança, não há upcycling que consiga dar conta de tanto produto descartado no nosso sistema de moda atual.

O upcycling precisa se tornar uma prática comum e fixa dentro do próprio sistema de criação de produtos. Substituir a criação de novos produtos nas marcas de moda, por coleções feitas somente a partir de upcycling, reuso e reciclagem de produtos já existentes. 

Devemos buscar maneiras de incluir essa prática no fluxo de forma justa, viável e transparente. Ou seja, reprogramando a direção de criação de designers e da educação de moda, mantendo empregados os funcionários de corte, costura, modelagem, etc, porém com novos conhecimentos e fazeres, manter o mercado funcionando, passar a trabalhar com preços justos e transparentes, com equidade e diversidade em cada etapa, substituindo a matéria prima virgem por produtos já existentes.

Um grande desafio também é incluir a logística reversa como prática obrigatória (lei, regulamentação e fiscalização no setor) para qualquer produtor de peças de moda. Isso contribuiria para que a produção de uma peça tivesse o custo real embutido. O custo que vai além da etapa de venda.

STL: Na opinião do Fashion Revolution, o upcycling é uma alternativa para a indústria da moda se tornar mais sustentável? Por quê?

F.R.:  Resumindo, sim, o Fashion Revolution vê o upcycling como uma importante ferramenta para contribuir para que a moda se torne mais sustentável. Porém não a única. Entendemos que não há uma única forma de alcançar essa urgente mudança, e que precisamos somar uma série de práticas promovidas por diferentes grupos de pessoas, de forma sistêmica, em que uma das práticas apoie a outra.

Às vezes tenho a sensação de que as pessoas têm uma esperança de encontrar "A Solução" , sabe? E ela não existe, porque o sistema da moda (entranhado também com tantos outros mercados como do petróleo, dos agrotóxicos e outros muitos) não é comandado por uma única prática, e sim por uma cultura e um sistema de vida. Assim, para que haja  justiça social e ambiental na indústria da moda é preciso de muitas mudanças e pessoas ao mesmo tempo. Principalmente órgãos públicos, reguladores e fiscalizadores.

_Gabriela Strinban

STL: Quem é o público que procura suas peças?

GS: O meu público hoje vem muito de pessoas que vivem no meio da moda, pessoas relevantes, autênticas e que conhecem o conceito, o sentido e o processo. Sabem o que estão vestindo, como foi feito e quem fez.

 

STL: Qual é a sua missão? Que mensagem você quer passar com o WELLUSED?

GS: Acho que a maior missão, além de impactar as pessoas com a moda de descarte fazendo da matéria prima já existente, novas roupas, é conscientizar o consumo de marcas autorais e pequenas que não fazem novas peças freneticamente, como marcas de departamento que consistem apenas em ganhos rentáveis e esquecem totalmente do meio ambiente. Sabemos bem que o fast fashion, além de gerar uma grande escala de lixo, poluição de água, pagar mal trabalhadores, não se importam com nada além de fazer dinheiro. 


STL: Qual é a sua parte favorita do processo?

GS: Com certeza a minha parte favorita do processo é a criação. Eu não sei desenhar, tudo basicamente é feito sob meu olho. Isso me deixa cada vez mais fascinada por cada criação. 


STL: O que mais te marcou até hoje?

GS: O que mais me marcou até hoje foi o dia que a Hooks Magazine me chamou para fazer um look pro fundador da revista e uma entrevista.


STL: Qual é a sua maior dificuldade?

GS: Hoje minha maior dificuldade é ser apenas eu em tudo. Eu garimpo, eu lavo, eu crio, eu executo, eu costuro, eu embalo, eu envio, eu fico nas redes sociais, eu faço tudo.

 

STL: Qual é o próximo passo do WELLUSED?

GS: O próximo passo da Well Used é um ateliê físico com mais pessoas com o mesmo objetivo. Buscando sempre a conscientização.

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