Parece estranho e até injusto pensar em moda quando a humanidade está sob ameaça, seja por uma guerra, conflitos armados, catástrofes naturais ou uma pandemia como a que estamos vivendo hoje. Mas muito além de roupas, luxo e looks, a moda é uma indústria que movimenta trilhões, no último ano foi estimado que a indústria fashion movimentou US$ 2,5 trilhões, empregando milhares de pessoas. Só no Brasil, a indústria da moda emprega diretamente e indiretamente mais de 8 milhões de pessoas. Sendo uma das maiores indústrias globais e a ponte entre arte e funcionalidade, a moda é um reflexo da nossa sociedade e do Zeitgeist que estamos vivenciando. Ela reflete o seu tempo e acompanha a humanidade, suas rupturas e também seus momentos mais delicados.
Logo, se quisermos compreender e estudar um período específico da História, precisamos olhar para o vestuário da época e como a moda refletia o conjunto social e cultural do período.
Durante a Primeira Guerra Mundial, quando a maioria da população masculina foi alistada para o exército, as mulheres precisaram assumir atividades e trabalhos que até então eram considerados masculinos, como trabalhar em fábricas e indústrias. Com isso, o vestuário feminino foi obrigado a se adaptar e deixar de lado as roupas pesadas, elaboradas e apertadas que pertenciam ao estilo da Belle Époque. São nos anos iniciais da guerra que temos os primeiros registros de mulheres abandonando os corsets, usando calças e uniformes, tanto por conta do trabalho, como por patriotismo. A Primeira Guerra Mundial foi um grande divisor de água na imagem da mulher na sociedade, se antes, a única utilidade da mulher era cuidar da casa e procriar, durante e no pós guerra, vemos uma mudança drástica nisso, o que reflete diretamente no vestuário.
Os grandes estilistas e as grandes maisons da época também foram forçados a se adaptar e a transformar completamente seu propósito durante a Grande Guerra, principalmente na França, que era a capital da moda mundial. A indústria têxtil empregava 34% da toda a classe operária na França, e a partir de 1914 mais da metade dessa mão de obra se mobilizou para fazer uniformes e meias para o exército francês. Diversas grifes e confecções também doaram seus espaços para a Cruz Vermelha e Paul Poiret, considerado o maior estilista do início do início século XX, se alistou ao exército francês no auge de sua carreira e trabalhou nos anos de guerra reforçando e reformando os uniformes da Tríplice Entente (Rússia, França e Reino Unido).
Com o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918 e o controle da pandemia da Gripe Espanhola em 1920, a paz foi restaurada na Europa e a juventude se viu naquele momento livre para fazer o que bem entendesse, e seu único desejo era viver da forma mais intensa possível. É aí que com uma ajudinha de Coco Chanel, surgem as flappers. As flappers representavam um novo estilo de vida das mulheres jovens, que usavam saias curtas, aboliram o espartilho, cortavam seus cabelos curtos, ouviam e dançavam provocativamente o jazz e o charleston e não seguiam a tradicional conduta feminina. Não é a toa que a década de 20 ficou conhecidos como “Os Anos Loucos” e a juventude de época foi chamada de “geração perdida” pelo seu modo de vida festeiro, superficial e regado a bebidas alcoólicas e drogas ilícitas. F. Scott Fitzgerald retratou fielmente o espírito da época em “O Grande Gatbsy” (1925).
Quase vinte anos depois, com a chegada da Segunda Guerra Mundial, em 1939, o mundo teve que enfrentar outra ameaça e a moda mais uma vez, foi obrigada a se reinventar e repensar seu papel como agente transformador.
A Segunda Guerra foi uma revanche nacionalista dos países que tinham “perdido” a Primeira Guerra, principalmente a Alemanha. O principal acontecimento da moda durante o período de guerra foi a invenção de matérias primas sintéticas e alternativas. O governo racionalizou o uso de tecidos nobres, como couro, seda e lã, pois os mesmos eram utilizados em grande escala para os uniformes dos soldados. Isso deu as grandes marcas de moda uma possibilidade de se reinventar, é nesse período que temos os primeiros relatos de palha e cortiço sendo usados na alta costura e em desfiles. É também nesse período que começa a ser implementado nas roupas, o Nylon, o acrílico e a viscose, conhecidos como artigos de substituição, por substituírem aqueles que era melhores e naturais e estavam sendo destinados ao exército.
Durante o período da Segunda Guerra, graças às bombas de gás que eram constantemente jogadas contra a população, um novo acessório vira parte obrigatória da vida de todos os pedestres, a máscara de gás. Por muitos meses as pessoas não se deslocava sem máscaras, tornando-se marca da silhueta de guerra.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945 a moda quis resgatar a feminilidade e a Era de Ouro, que foi a Belle Époque e estava completamente abandonada após duas guerras catastróficas. Com isso, Christian Dior apresenta o “New Look” e oferece para o mundo o que viria a ser a silhueta dos anos 50. Cintura extremamente marcada, saias godês imensas e rodadas e ombro arredondado. Trazendo de volta a imagem de uma mulher boneca, recatada e hiper feminina.
Com isso, ao olharmos para o passado histórico nós vemos o quanto a moda tem um papel indispensável na construção, na criação e na compreensão da imagem de toda uma época e geração. Hoje, nós estamos vivendo uma ameaça diferente de guerras e conflitos armados, mas que também está mudando completamente nossa forma de viver, de enxergar o mundo e de nos apresentar.
Qual será a herança dessa pandemia que estamos presenciando no vestuário contemporâneo? Será que teremos uma volta repentina do estilo de vida intenso e superficial dos “Anos Loucos”? Ou será que teremos na máscara um símbolo de resistência? Não é possível prever qual será o novo normal a partir de agora e o que definirá a silhueta pós COVID-19. Por enquanto nós seguimos fazendo nossa parte, ficando em casa e nos protegendo, aguardando os próximos passos, esperando e desejando por um futuro melhor.