O direito da moda pode ser considerado quase como algo inerente à indústria. No entanto, foi só em meados de 2006 que o termo “fashion law” foi criado nos Estados Unidos, com o objetivo de se aprofundar nas especificidades da moda quando se trata de leis e direitos. De lá para cá, o conceito se expandiu e se popularizou, chegando ao Brasil e despertando o interesse de profissionais da área e, claro, de muitos entusiastas de moda que sonham em seguir carreira no segmento.
Para entender mais do assunto e saber mais sobre a profissão, conversamos com uma referência na área. Deborah Portilho é formada em direito pela UFRJ, com mestrado em Propriedade Intelectual e Inovação. Além disso, é presidente da Comissão de Direito da Moda do Rio de Janeiro há nove anos e dá cursos de fashion law. Confira nosso papo super esclarecedor sobre a carreira:
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STL: Primeiro, me conta um pouco sobre sua trajetória profissional. Como você começou no ramo?
D.P.: Eu diria para você que a minha vida é uma série de acasos que eu vi como oportunidades e trabalhei em cima delas. Mas não foi totalmente planejado. Eu comecei em um escritório de propriedade intelectual, sem saber o que era marcas e patentes. Fui contratada por conta do inglês, porque precisava de alguém que falasse e lesse inglês para distribuir internamente a correspondência. Um ano depois eu ia fazer vestibular e disse: “bem, eu vou fazer para direito”. Então foi assim, um acaso. Eu fiquei encantada por marcas, fiz direito, me formei pela UFRJ em 1989. Fiquei nesse escritório por 25 anos. Aí eu saí em 2008 e montei minha empresa e o escritório. Então, hoje em dia eu tenho duas empresas, uma de consultoria e treinamento e outra o escritório de advocacia, por meio do qual eu faço os pareceres e assistências técnicas.
No escritório eu era especializada em marcas de medicamentos. Desde que surgiram os genéricos, em 2000, eu tinha muitos clientes na área e fiquei como especialista em marcas de medicamentos. E ainda como especialista, uma advogada na área de propriedade intelectual. Em 2012, o designer Gilberto Strunck indicou meu nome para a Paula Acioli, que à época era coordenadora do curso de pós-graduação na FGV, de Negócios na Moda. E ela queria que eu desse aula de marcas e de contratos. Levei uma amiga da área, Bruna Lins. E a Bruna estava começando com o Fashion Business & Law Institute aqui no Brasil. O fashion law estava começando nos Estados Unidos e aqui no Brasil também. E aí a coisa foi caminhando. Eu levei ela para o FGV e ela me levou para o instituto. E eu já era professora do IBMEC, da pós-graduação, desde 2007.
Aí eu disse “vamos criar um curso de fashion law”, porque ele começou a aparecer com um pouco mais de força, ainda muito desconhecido. E eu criei o primeiro curso de fashion law de 30h no IBMEC e deu muito certo.
Em 2015, levamos esse curso para São Paulo e fez um sucesso, porque vieram pessoas de vários estados para participar do curso. Então tenho muitas alunas que saíram do curso e que criaram pós-graduação, curso também. Tem uma série de pessoas que cresceram no fashion law a partir desses cursos e isso me orgulha muito. E isso não foi planejado, não foi uma coisa assim muito pensada, foi “vamos fazer” e aconteceu.
Quando chegou em 2015, tinha uma comissão em São Paulo que não era muito ativa e tinha também uma advogada em São Paulo que estava querendo fazer uma comissão. Aí eu pedi no Rio de Janeiro. Comentei com o Gabriel Leonardos, Conselheiro da OAB/RJ (e atualmente presidente da ABPI), sobre a possibilidade da criação da Comissão de Direito da Moda e ele encaminhou meu pedido à Diretoria da OAB. Assim, apesar de os dirigentes da OAB/RJ não terem acreditado muito na proposta, eles aceitaram criar a Comissão pelo fato de o Gabriel Leonardos ter dado seu aval! Por isso, a ajuda dele foi imprescindível para que o fashion law pudesse crescer no Rio e no Brasil.
Sofremos muito bullying. “O que vocês fazem? Combinam gravata com a meia?” (risos). Foi um trabalho de não só levar a comissão muito a sério, mas de realmente promover vários assuntos relevantes. E, bem, eu estou no meu terceiro mandato, é o nono ano que eu estou à frente da comissão.
No primeiro ano a gente fez um evento que tinha a Susan Scafidi, que é quem criou o termo, e o Alexandre Herchcovitch. Dois nomes extremamente fortes já no primeiro evento. E assim foram, cada ano a gente se superando. Estamos fazendo um trabalho na comissão muito importante e difundindo o que é o fashion law.
Também gostaria de mencionar que, finalmente, estou colocando em prática um projeto antigo: o de criar uma plataforma de cursos com “a minha cara” (a D.Portilho Academy), ou seja, cursos com a minha forma diferenciada de ensinar, já que ela tem contribuído para o sucesso profissional de um grande número de alunos que atualmente são advogados em cargos de destaque na área da PI! O primeiro curso será sobre Trade Dress e começa no dia 05/03.
Especificamente sobre o curso de FASHION LAW, eu vou continuar a oferecê-lo pela ABAPI (Associação Brasileira dos Agentes da Propriedade Industrial) e a próxima turma está programada para o período de 07 de outubro a 13 de novembro.
Qual foi o ponto-chave para se firmar no direito da moda?
D.P.: Foi a comissão. Criar Comissão de Direito da Moda, várias foram criadas. E aí quando viram que isso não dava dinheiro — porque não dá dinheiro ainda, não é uma profissão que seja de conhecimento [geral] — muita gente desistiu. Por isso que eu nunca me dediquei totalmente, é um trabalho voluntário, que realmente é muito grande, mas que você tem que equilibrar com outro trabalho. Então, eu como parecerista e assistente técnica das ações e um marido também que tem muito boa vontade de segurar a barra é o que mantém (risos). Você não consegue dizer “vou ser advogada na área de fashion law”, porque a profissão ainda não está firmada.
Vou dar um exemplo, há alguns anos não existia direito do entretenimento, existia direito autoral. Então se alguém quisesse um artista, um show, quisesse contratar um advogado, o advogado seria na área de direito autoral, de propriedade intelectual, mas não tinha um direito do entretenimento. E aos poucos as pessoas foram percebendo que cada uma dessas áreas tinham necessidades específicas, conhecimentos específicos e começaram a atender seus clientes e a se especializar naquele segmento de shows, de teatro, porque são contratos específicos. Acabou que o direito autoral virou uma base, tal como a propriedade intelectual virou uma base para o direito da moda.
O que é o fashion law?
D.P.: O fashion law nasceu com a professora Susan Scafidi, da Fordham University, em Nova York, e ela percebeu a falta de proteção da moda nos Estados Unidos. Muita cópia! 'Steal the look’ de uma empresa por outra para vender bem mais barato, na minha opinião, não é correto, pois isso pode acabar destruindo uma indústria. Já para uso próprio é perfeitamente aceitável. Tipo o sapato da Valentino, custa 4 mil reais, aí vende por 400, quem vai pagar 4 mil se o mercado está inundado de sapatos de 200, 400 reais, qual é o seu diferencial? Então quando tem essa cópia muito acintosa, muito espalhada, você perde a sua exclusividade, porque as marcas de luxo você paga pela exclusividade.
Ela começou a falar sobre isso em um site dela, que chegou a ser um dos cem sites jurídicos mais importantes dos EUA. E ela cunhou esse termo. Foi por conta da cópia na moda. E a partir daí a coisa foi crescendo e ela criou em 2011 o Fashion Law Institute com o suporte de 100 mil dólares da Diane Von Furstenberg, que na época era presidente do Council of Fashion Designers of America. Teve esse aporte e criaram o instituto para orientar designers e também advogados que queriam atuar nessa área. Foi um sucesso. Em 2011, 2012 aqui no Brasil já havia pessoas fazendo o que a Susan estava fazendo. O fashion law começou a crescer e aí já não era mais só propriedade intelectual. As pessoas começaram a notar que a área da moda é muito discriminada, é tida como fútil, mas ela é uma indústria poderosa que movimenta bilhões, gera empregos, cria mercados, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, e ela não era levada a sério nem na academia.
O que você diria para quem está fazendo faculdade de direito e quer trabalhar com moda?
D.P.: As pessoas começaram a perceber que a indústria da moda precisa de advogados na área imobiliária, na área trabalhista, na área societária, tributária, de consumidor. A moda é muito vendida, então as necessidades de um advogado consumerista na área de moda é diferente de um advogado que vai tratar de outros problemas, de reclamação, por exemplo de compras on-line. A compra de artigos de moda é muito mais complexa do que comprar aparelhos domésticos ou comprar livros. Na área trabalhista, a gente não aprende nada sobre isso na faculdade.
Eu sempre recomendo que se a pessoa está na área imobiliária, procure ver quais são as necessidades das lojas, que são totalmente diferentes das necessidades de uma imobiliária que cuida de aluguel de apartamento. Porque tem inúmeras questões de shopping center, de contratos, raio de ação, problemas específicos de lojas e empresas de moda que você não aprende na faculdade.
O que eu diria para os alunos de direito que gostam de moda é: veja qual a área que você mais gosta. Você gosta de societário, dos problemas contratuais? Vai nessa área e vai estudando para ver quais são os problemas específicos, fazendo cursos da área de moda, que em algum momento você vai conseguir. Não dá para trabalhar totalmente com moda, mas dentro de um escritório você pode chegar e se especializar, fazer cursos e virar uma especialista em fashion law.
Quais são as opções de trabalho para quem quer focar no direito da moda?
D.P.: Para cada área tem problemas específicos e a indústria da moda precisa de um profissional que entenda das necessidades daquela indústria. O advogado ambiental para petróleo é um, o advogado ambiental para moda, os problemas são outros. E os advogados não têm essa percepção de que tem uma indústria carente de profissionais que possam atender. E a indústria também não tem conhecimento que temos profissionais se especializando nisso.
Para o advogado, tem muita coisa. Às vezes as pessoas falam “eu quero sair da área”. Não, se você já está trabalhando, estagiando em uma área específica, mergulha na mesma área, mas traz uma clientela diferente. Tenta conquistar clientes da área de moda. Dentro de um escritório você pode sugerir e se o escritório comprar a ideia você acaba criando um segmento a mais de cliente para ser atendido. Eu tenho certeza que vão gostar dessa proatividade do advogado.
E o que você sugere para quem quer se especializar em direito da moda?
D.P.: Primeiro, você tem que entender, fazer um curso básico de fashion law, tem vários. Tem livros também. Não desiste. Faça paralelamente, [porque] para se dedicar totalmente ao fashion law, ainda não tem esse mercado, a não ser que você consiga um emprego em um grupo de moda.
Busque estágio, faça cursos. Há grupos de estudos, isso abre portas. Participar dos nossos eventos [da comissão] também abre muitas portas, porque acaba se entrosando com outras pessoas.
Como é o mercado de trabalho para essa profissão?
D.P.: Você não vai conseguir uma vaga “procura-se fashion lawyer”. Você pode mandar seu currículo para empresas de moda e ir colocando nele que você participa da Comissão de Direito da Moda, se for o caso, que você fez cursos de direito da moda, então você vai focar naquele segmento.
Quando alguém de RH lê o currículo de um advogado, de um estagiário, dizendo que tem alguma experiência com a indústria da moda, ele vai ter um diferencial em relação a um outro que nunca estudou [a área], então aquilo vai chamar a atenção. Ele tem mais chances de conseguir um emprego.
Tem muita gente que fica apaixonado por PI (Propriedade Intelectual), que é a base do fashion law, e isso ajuda. Eu não vou dizer que vai ser contratado por isso, mas entrando em um escritório de PI você vai acabar tendo aquela clientela de moda e trabalhando mais com aqueles assuntos de moda.
Quais os maiores desafios na profissão?
D.P.: Fazer com o que o mercado tenha conhecimento dessa área. E nesse sentido, a comissão vem ajudando bastante, porque a gente faz eventos. A gente precisa realmente atingir um outro público, porque o público de advogados, pelo menos o público jovem, já está sabendo. Mas a indústria da moda ainda precisa sentir essa necessidade e pesquisar, procurar isso, buscar advogados especializados em moda. [É preciso que] pessoas dentro do RH e dentro do jurídico saibam que existe. Mas é persistência, porque a indústria da moda é como outra qualquer e tem necessidades em todos os segmentos do direito, o direito conversa com todas as áreas da indústria da moda.
Qual conselho você daria para quem quer seguir na área?
D.P.: Ficar ligado nos cursos. A comissão tem uma variedade de assuntos tão grande que dá a possibilidade de você fazer networking com advogados de várias áreas, bem como com profissionais da indústria da moda. Seguir a Comissão de Direito da Moda do Rio, de São Paulo ou se você tiver uma na sua cidade, se aproxime. Fique atento aos cursos, porque não é toda hora que aparece, mas tem muita coisa se você pesquisar. Você vai se aproximando e as oportunidades aparecem muito mais pelo networking do que pelo currículo. Se inscreve em grupos de estudo. Se você tiver o mínimo de interação, pode ter certeza que você vai conseguir.
E um conselho que eu queria dar é trabalhar muito e pegar qualquer oportunidade. Ficar ligado, porque às vezes você programa para ir para um lado e a vida te leva para outro.
Quais livros você indica para quem sonha em trabalhar com direito da moda?
D.P.: The Little Book of Fashion Law, da Ursula Furri-Perry, Fashion Law - Direito e Moda no Brasil, com coordenação de Mônica Stefen Guise Rosina e Maria Fernanda Cury, A Proteção Jurídica das Criações de Moda, do Tiago de Oliveira e Fashion Law: O Direito Está Na Moda, com coordenação da Juliana Oliveira Domingues.
Para se especializar em direito da moda, há alguns cursos na Faculdade Santa Marcelina, na Belas Artes, na Fashion Law & Business School e na FGV. São especializações para alunos ou profissionais do direito que desejam ter conhecimentos da indústria.
Esse é mais um dos nossos conteúdos do Carreira de Moda. Quinzenalmente conversamos com um expert da indústria, que compartilha suas experiências e dá seu ponto de vista sobre sua profissão.