Às vezes não percebemos o quanto nosso estilo pessoal pode ser moldado por inúmeros fatores. Enquanto crescemos e descobrimos quem somos e do que gostamos, tudo que nos permeia vai nos influenciar de alguma forma. Isso significa que até os aspectos ruins podem nos afetar. No meu caso, como mulher negra, percebi — por conta de um All Star rosa — o quanto o racismo afetou a maneira como eu me vestia.
Atualmente, sou conhecida pelas pessoas à minha volta como alguém que se veste de forma bem espalhafatosa. Cores, estampas, texturas, brilho… qualquer coisa fora do comum, e que geralmente chama atenção, faz parte do meu estilo. Mas nem sempre foi assim. Pelo contrário, houve um tempo em que tudo o que eu não queria era me destacar.
Como boa millennial, vivi minha infância e adolescência entre os anos 2000 e metade da década de 2010. Era um período em que a internet era recente, as referências, para mim, vinham muito mais da TV e das revistas, e que não se falava sobre representatividade. Talvez fosse por isso que eu queria desesperadamente ser branca.
Quando eu entrei no ensino médio, minhas amigas eram todas brancas e, por conta disso, eu queria ser parecida com elas. Éramos um grupo de quatro e as pessoas sempre falavam que as três podiam ser irmãs, porque se pareciam. Claro que isso não se aplicava a mim, a diferente. E eu odiava isso. Então, meu mecanismo era me vestir como elas, tentar me misturar ao máximo e não chamar muita atenção — como se isso fosse me tornar menos negra.
Apesar desse cenário, eu já gostava muito de rosa e também de coisas consideradas diferentes, que, é claro, jamais tinha coragem de usar. No entanto, um belo dia, quando eu fui à uma loja de sapatos, me apaixonei à primeira vista por ele: o All Star rosa. Mas não era qualquer All Star rosa, era simplesmente aquele modelo de bota, que vinha até o joelho, bem típico dos anos 2000 (parecido com a icônica calça-tênis da Willow Smith, sabe?). Meio que sem pensar muito, pedi de presente e consegui ganhar. Foi uma sensação indescritível ter algo que eu queria tanto e achava tão lindo.
Mal sabia eu que o difícil seria ter coragem de usar — e para mim é doido pensar que realmente houve um tempo em que eu precisava de coragem só para vestir algo que eu gostava muito. Bom, na época eu reuni toda a confiança que eu não tinha e fui para a escola com ele. Fiquei tímida, mas quando saí de casa, foi melhor do que parecia.
Quando cheguei na escola e encontrei uma das minhas amigas, ela disse que “não teria coragem de usar”. Isso foi o suficiente para eu morrer de vergonha. A culpa não foi exatamente dela, mas eu tinha tanta necessidade de validação das minhas amigas brancas, que o fato de uma delas dizer que não usaria algo que eu tinha amado fez com que eu automaticamente não quisesse mais aquilo. A partir daquele dia, eu não quis usar mais o tênis e até doei depois de um tempo.
Uma única vez usando algo que me destoava ainda mais das outras pessoas foi o suficiente para eu desistir de tentar ser eu mesma. Uma única frase de uma amiga fez com que eu passasse a odiar algo que amava.
O racismo age de formas inimagináveis para quem não é uma pessoa negra. Ele nos tira tudo: nossa confiança, nossa autoestima, nossa identidade, nossos desejos e gostos. São tantas nuances de como o racismo interfere na nossa personalidade que é difícil distinguir quem somos de verdade e o que é resultado de uma ferida aberta.
Depois de muitos anos desse episódio, lembrar desse All Star rosa me faz pensar no quanto de mim, eu abri mão só para tentar ser aceita. Ele é um lembrete do quanto minha identidade foi ceifada durante boa parte da minha vida por conta de uma estrutura que é feita para perpetuar o auto-ódio entre as pessoas negras. E saber que meu estilo, que é algo tão fundamental na minha vida, foi afetado por isso é muito doloroso.
Recentemente, comprei um tênis como aquele. Não era rosa, porque não encontrei, mas a versão preta foi o suficiente para acolher a Karen adolescente dentro de mim. Usei com confiança e sem me importar com os olhares das pessoas.
Hoje, não há quem me faça deixar de me vestir como eu quero. Não importa o quão colorido, esquisito ou chamativo seja algo, se eu gostei, eu vou usar. E se ser eu mesma vai fazer eu me destacar no bom ou mau sentido aos olhos dos outros, ótimo. É libertador saber que não tem nada que vá me podar. Não mais.